quinta-feira, 27 de setembro de 2012

"O estado privilegia os interesses do agronegócio frente aos da população"

Da IHU On-Line
A Política Nacional de Agroecologia, anunciada na semana passada pelo governo brasileiro, ainda é embrionária, porque “ainda não foi implementado um plano de ação de governo que traduza essa política em investimentos, em pesquisa, em uma série de áreas de monitoramento que precisam de recursos para estar realmente efetuando o que esperamos, ou seja, uma transição de modelo”, avalia o pesquisador da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco, Fernando Ferreira Carneiro.
Incentivador do desenvolvimento de territórios agrícolas livres de agrotóxicos, o biólogo diz que a política é tímida porque o agronegócio é hegemônico no país. “A nossa análise é de que o Estado brasileiro apoia o agronegócio, porque ele é forte no campo legislativo – basta ver a Bancada Ruralista –, é forte no campo econômico – veja os financiamentos que eles recebem –, é forte no campo jurídico – veja quem são os punidos pelos assassinatos e violência nos campos –, e é forte na mídia”, diz à IHU On-Line em entrevista concedida por telefone.


Para ele, a agroecologia não é uma “mera técnica, pois implica não somente no não uso de agrotóxicos, mas também numa melhor repartição dos benefícios sociais e ambientais, considerando a natureza como ator fundamental”. E ressalta: “Na medida em que olhamos o sistema produtivo considerando o cuidado com o planeta, começamos a ter ganhos imediatos em todos os sentidos. Então, para os pesquisadores da saúde coletiva, a agroecologia é uma estratégia de promoção da saúde”.



Fernando Ferreira Carneiro é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestre em Ciências da Saúde pelo Instituto Nacional de Salud Pública do México, e doutor em Ciência Animal pela UFMG. É professor adjunto da Universidade de Brasília – UnB e membro do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e do Programa de Ciências da Saúde da mesma universidade. Faz parte do grupo de trabalho Saúde e Ambiente, da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – Abrasco e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

Confira a entrevista:



Em que aspectos a Política Nacional de Agroecologia é considerada tímida?



Toda política pública aprovada é acompanhada de um plano de ação, onde se estabelecem os compromissos dos fatores envolvidos e se determina como essa política será traduzida em programas e ações governamentais, visando literalmente implementá-la para que não seja uma mera carta de intenções. Então, a princípio ainda não foi implementado um plano de ação de governo que traduza essa política em investimentos, em pesquisa, em uma série de áreas de monitoramento que precisam de recursos para estar realmente efetuando o que esperamos, ou seja, uma transição de modelo.



Que questões fundamentais sugeridas pela Abrasco não foram consideradas na Política Nacional de Agroecologia?



A Abrasco chegou a ser convidada para uma mesa de controvérsias, uma mesa de diálogos da sociedade civil, que ocorreu na presidência da República antes do lançamento do decreto. Da nossa parte, apoiamos uma política que promovesse e incentivasse territórios livres de agrotóxico.



Portanto, nossa proposta consistia em incentivar municípios a comporem uma operação que privilegiasse, por exemplo, a agroecologia, para ter um território que pudesse ser declarado livre de agrotóxicos. Por sua vez, a política pública daria incentivos fiscais no sentido de financiar projetos para esses territórios.



Os agrotóxicos não pagam impostos e em muitos casos recebem isenção de 100%. Então, por que não incentivar outras práticas, livres de veneno? Teria de se criar incentivos para que os territórios ou as unidades de cultivo se declarassem livres de agrotóxicos ou obtivessem recursos do Estado. Como cidadão, eu ficaria muito mais satisfeito subsidiando a agroecologia do que subsidiando venenos para alavancar o agronegócio.



Apesar de o governo desenvolver a Política Nacional de Agroecologia, dados demonstram que o uso de agrotóxicos triplicou na última década. Quais são as principais contradições do governo nesse sentido, que por um lado investe em agroecologia e, por outro, facilita o uso de agrotóxicos na agricultura?



A nossa análise é de que o Estado brasileiro apoia o agronegócio, porque ele é forte no campo legislativo – basta ver a Bancada Ruralista –, é forte no campo econômico – veja os financiamentos que eles recebem –, é forte no campo jurídico – veja quem são os punidos pelos assassinatos e violência nos campos –, e é forte na mídia. Então, ele tem uma hegemonia em vários campos e, em contraposição, o Estado brasileiro é fraco, pequeno, tímido para apoiar a agroecologia. O orçamento do Incra e do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA são muito mais defasados. A política de reforma agrária caminha e quase inexiste de fiscalização e vigilância do uso de agrotóxicos. Não sabemos se a água que bebemos nas cidades está contaminada ou não com o uso de agrotóxicos, porque os dados não são públicos. Então, o Estado brasileiro tem que ser forte para atuar em relação à agroecologia da mesma forma que é para o agronegócio.



Infelizmente, não é essa a realidade. É claro que essa política é um passo na direção de começar a ter uma presença maior do Estado numa seara, que era de domínio exclusivo do mercado. Quem queria produzir ecologicamente o fazia por sua conta em risco, e ainda o faz, porque, quando o agricultor diz que não quer financiamento para comprar veneno, ele é intimidado pelos bancos, porque existe uma cultura de subsídio do financiamento, da obrigação de usar veneno, que foi construída desde a Revolução Verde. Então, lutar contra tudo isso e exigir uma mudança de cultura, uma mudança de modelo, não é tarefa simples, e o Estado brasileiro realmente ainda não prioriza essa questão em termos de decisão política.



Trata-se de duas visões de agricultura para o mesmo país?



Exatamente. Mas em algum momento teremos de decidir qual será a nossa situação no mundo: uma grande lixeira tóxica, como está na reportagem de capa da revista Ciência da semana passada, onde quatorze agrotóxicos proibidos em outros países são usados livremente no Brasil, o maior consumidor de agrotóxicos do planeta; ou se o país quer se tornar o maior produtor de alimentos saudáveis do mundo. Qual o papel que o país quer ter? Produzir a qualquer custo? Nesse modelo de produção, o lucro é capitalizado pelos donos do agronegócio, e com o sistema financeiro investindo e comprando terras no Brasil, o prejuízo será socializado. Para se ter uma ideia, segundo estudos realizados por um economista do IBGE, Wagner Lopes Soares, a cada um dólar gasto em agrotóxico, gasta-se 1,28 dólares no SUS só de atendimento em intoxicação aguda, sem falar nos casos de câncer ou de problemas de saúde, que são difíceis de serem mensurados. Temos um Estado muito contraditório, no qual existe uma hegemonia quase completa dos interesses privados do agronegócio, frente aos interesses da população e da própria natureza.



Que questões deveriam ser incorporadas à Política Nacional de Agroecologia para garantir a promoção da saúde? Em que medida a agroecologia potencializa a saúde?



Esperamos que a política signifique a implementação de modelos produtivos mais saudáveis. Na medida em que se começa a eliminar a utilização de venenos e a diversificar a produção, promove-se a biodiversidade e alteram-se os territórios. Consequentemente, quando diminui o uso de substâncias químicas, começa-se a promover saúde. Os dados das pesquisas indicam que o índice de câncer na população rural é maior do que na urbana. O que pode explicar isso? Quais são os fatores que geram câncer nas pessoas que residem nas cidades ou no campo? Essas perguntas merecem ser respondidas.



A agroecologia foi uma das primeiras conclusões do nosso dossiê de alerta à população sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. A agroecologia vem como a grande alternativa, como a proposta real, pragmática de mudança do sistema produtivo. Não se trata de uma mera técnica, pois ela implica não somente no não uso de agrotóxicos, mas também numa melhor repartição dos benefícios sociais e ambientais, considerando a natureza como ator fundamental. Na medida em que olharmos o sistema produtivo considerando o cuidado com o planeta, começaremos a ter ganhos imediatos em todos os sentidos. Então, para os pesquisadores da saúde coletiva, a agroecologia é uma estratégia de promoção da saúde. Na medida em que hortas escolares, hortas comunitárias, vão sendo trabalhadas sem veneno, garantiremos alimentos sem resíduos de agrotóxico, e evitaremos futuras doenças associadas ao consumo de produtos com resíduos.



Como estão as pesquisas na área da saúde em relação aos impactos tanto dos agrotóxicos como da transgenia?



Enquanto o agrotóxico ainda é o princípio de prevenção, na transgenia podemos falar no princípio de precaução, em termos de saúde, apesar de existirem controvérsias científicas. Se analisarmos o transgênico junto com o agrotóxico, veremos que eles fazem parte do mesmo pacote agrobiotecnológico. O Brasil triplicou o uso do agrotóxico a partir da introdução do transgênico. Então, é muito importante analisar o transgênico nessa perspectiva. Ele viabiliza uma nova forma de acumulação de capital pelas empresas que obrigam o agricultor a usar determinadas sementes que servem para determinados agrotóxicos. Então, é uma estratégia casada. As lutas para combater esses produtos são fundamentais, porque eles fazem parte da mesma estratégia de maximizar lucros e socializar prejuízos no campo e na cidade.



Sobre os agrotóxicos, ao contrário dos transgênicos, já foi desenvolvida uma farta literatura sobre os impactos para a saúde. Há estudos que mencionam a contaminação do leite materno, da água da chuva, do ar etc. Por isso ressaltamos a necessidade de termos um processo preventivo, pois já conhecemos parte dos danos que eles causam.



Deseja acrescentar algo?



Em novembro vamos lançar a última etapa do dossiê da Abrasco sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde, em parceria com a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, que é justamente uma campanha que não combate só os agrotóxicos como também busca promover a agroecologia. Estamos juntando o saber científico com o saber popular, e com isso produziremos um conhecimento com caráter crítico e transformador.

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