sexta-feira, 16 de agosto de 2013

‘Rio serviu de laboratório para as cidades-negócio; hoje, é um laboratório de cidade rebelde’

ImagemValéria Nader e Gabriel Brito .
 
Após anos de descaso no tratamento da coisa pública, complementados por galopante violência militar, o governo Sergio Cabral, a exemplo de outros governantes, foi ao fundo do poço na avaliação popular, a partir dos levantes de junho. Agora, sua casa encontra-se sob vigília, com manifestantes cercando-a dia e noite, e a Câmara Municipal foi ocupada, como se viu em outras capitais.
 
Para analisar o quadro político do Rio de Janeiro, inflamado pelo desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, após detenção por policiais da UPP da Rocinha, pra não falar da chacina da Maré, o Correio da Cidadania entrevistou o deputado estadual Marcelo Freixo. O deputado atribui os levantes iniciados em junho ao esgotamento da atual fórmula de “governabilidade” política, baseada em acordos fisiológicos e troca de favores, sem, portanto, relação alguma com os interesses da sociedade.
 
Freixo traça o quadro desumano a que conduziu a violência que assola o Rio, dentro ou fora das áreas de UPPs. “Tivemos uma audiência pública sobre desaparecidos na Assembleia Legislativa. E só em 2012 nós tivemos 5.900 casos de desaparecimentos no Rio de Janeiro, portanto, são muitos Amarildos que temos. O caso do Amarildo chama a atenção porque foi numa área de UPP (Rocinha), onde não seria aceitável esse tipo de coisa. Mas é aceitável e tolerado em muitas outras áreas do Rio. São 5900 desaparecidos só em 2012, número crescente ano a ano, e não existe nenhuma política pública pra dar conta do problema, porque são pessoas e famílias invisíveis à luz deste modelo de segurança pública que temos”, conta.
 
Não surpreende que a paciência popular tenha se esgotado, uma vez que, à trágica violência, se somam outros grandes problemas, comuns a todas as grandes cidades brasileiras. “Da mesma maneira que o Rio de Janeiro serviu de laboratório do capital para uma cidade-negócio, elitizada por remoções e grande investimento de capital, seguidos de um processo muito forte de privatizações e ausência de maior participação da sociedade civil, hoje também é laboratório da resistência a esse modelo de cidade”, explica.
 
A entrevista completa com o deputado estadual e militante dos direitos humanos Marcelo Freixo pode ser lida a seguir.
 
Correio de Cidadania: Como você enxerga a atual efervescência social e política no Rio de Janeiro, que veio na esteira das grandes mobilizações iniciadas em junho e simbolizadas hoje por diversas manifestações populares em toda a cidade, culminando nas ocupações em frente à casa do governador Cabral e, agora, na própria Câmara Municipal?
 
Marcelo Freixo: Vejo com bons olhos, pois há um fortalecimento do processo democrático. Acho muito importante que, de alguma maneira, a sociedade se levante, vá às ruas, questione, desde a desmilitarização da polícia até o papel do Ministério Público, passando pela corrupção generalizada, reforma política... São tantas as pautas... No caso do Rio, mais especificamente, que proteste contra a privatização do Maracanã, por exemplo.
 
Como pano de fundo, acho que podemos ver duas questões centrais pra entender o momento. Primeiro, a crise desse modelo de governabilidade, calcado nas alianças políticas comerciais e mercantis, que só olham para partidos e siglas pensando no tempo de televisão e cargos que podem oferecer.
 
Essa lógica mercantil na relação entre os partidos, evidentemente, é muito distante dos interesses da sociedade, dizendo respeito somente aos interesses econômicos daqueles que controlam partidos e mandatos.
 
Por outro lado, há uma crise muito grande do modelo de cidade. A maior parte das revoltas acontece nas grandes cidades, e isso se soma ao modelo de governabilidade: cidades cada vez mais caras, elitizadas, projetos de cidade baseados em remoções e grandes eventos, porém, com o exercício da cidadania muito frágil.
 
As duas coisas se somam e acabou acontecendo um grande levante, uma grande onda de insatisfação e protestos, que a meu ver podem ter resultados de médio e longo prazos muito favoráveis para a nossa democracia.
 
Correio de Cidadania: Até pouco tempo atrás, ainda era perceptível um entusiasmo da população carioca com a ideia da cidade eleita para sediar os eventos esportivos mundiais, e que pulsaria ao seu sabor. Como está hoje a percepção da população carioca sobre a sociedade em que vive, neste momento de desaceleração econômica e de acirramento da conjuntura política e social?
 
Marcelo Freixo: Na verdade, a população não deixou de gostar de futebol, não deixou de gostar de Olimpíadas. O problema é que não está convidada pra essa festa. Neste domingo (11/08), tivemos o Fla x Flu aqui no Maracanã, que sempre foi um dos clássicos mais famosos e importantes do futebol. É interessante olhar o perfil do público que estava no estádio: era um público embranquecido e elitizado. O ingresso mais barato custava 80 reais. Que família, hoje, pode pagar 80 reais, em cada ingresso, e ir ao Maracanã? Portanto, não se deixou de gostar de futebol. Exatamente por se gostar, protesta-se contra esse modelo elitizado de concepção de platéia e espetáculo.
 
É só ver a documentação da OMX, a empresa que fez o estudo de viabilidade econômica do Maracanã, depois também ganhou a licitação e hoje é dona do estádio. Nos documentos, diz categoricamente que os clubes vão ganhar dinheiro com a mudança de perfil do público e encarecimento do espetáculo. Está escrito nos documentos da OMX.
 
A população não deixou de gostar de futebol, mas critica o modelo de governo e sua percepção de sociedade neste processo, isto é, que a elitização dos esportes é acompanhada pela elitização da cidade, com as remoções, o encarecimento da vida etc. Não é a população que deixou de gostar dos eventos esportivos; ela percebeu que não pode participar exatamente da festa que mais gosta.
 
Correio de Cidadania: Quais são, em sua visão, as mazelas sociais mais profundas hoje no Rio de Janeiro, cidade que esteve particularmente afinada ao modelo de desenvolvimento brasileiro, que aprofundou a lógica neoliberal a partir de negócios e parcerias entre o Estado e o grande capital, ao mesmo tempo em que reforçava o Estado Policial?
 
Marcelo Freixo: Para todo Estado mínimo, há um Estado Penal. Temos um crescimento brutal do sistema prisional e um crescimento muito forte da violência policial, que de certa forma foi socializada nessas manifestações. Aquela violência, naturalizada nas áreas mais pobres do Rio, se estendeu a todos os manifestantes, de todos os setores da sociedade, inclusive os que não são da favela. Houve um processo de ampliação da violência, que a tornou mais visível aos olhos do conjunto da sociedade.
 
E o Rio é uma das cidades mais desiguais de toda a América Latina. Rico é mais rico, pobre é mais pobre. Um fosso muito grande de desigualdade, com serviços públicos de saúde, educação e transportes – pra falar do tripé principal de qualquer grande cidade – absolutamente precários. Serviços privatizados e que atendem interesses exclusivos de determinadas empreiteiras, como é o caso do transporte, onde elas administram as concessões. São também os casos do metrô, das barcas e dos trens da Supervia.
 
São grandes negócios às custas de uma qualidade de vida cada vez mais deteriorada, o que dá sentido aos movimentos e à insatisfação coletiva das ruas.
 
Correio de Cidadania: O que a chacina da Maré e o caso Amarildo revelam, por sua vez, das atuais políticas de segurança pública do estado, especialmente as tão aclamadas UPPs?
 
Marcelo Freixo: Nesta terça, 13, tivemos uma audiência pública sobre desaparecidos na Assembleia Legislativa. E só em 2012 nós tivemos 5.900 casos de desaparecimentos no Rio de Janeiro, portanto, são muitos Amarildos que temos. O caso do Amarildo chama a atenção porque foi numa área de UPP (Rocinha), onde não seria aceitável esse tipo de coisa. Mas é aceitável e tolerado em muitas outras áreas do Rio. São 5900 só em 2012, número crescente ano a ano, e não existe nenhuma política pública pra dar conta do problema, porque são pessoas e famílias invisíveis à luz deste modelo de segurança pública que temos.
 
O que estamos cobrando aqui não é só em relação ao caso Amarildo, mas em relação a todos os demais casos, com menos visibilidade e não menos dolorosos. Precisamos ter um departamento específico pra cuidar só de desaparecidos, dar assistência à família e clarear os acontecimentos. Precisamos saber quantos desses desaparecimentos decorreram homicídios, quantos foram mortos pela polícia, pelo tráfico ou pela milícia.
 
O que significa um estado que tem quase 6 mil desaparecidos por ano? Essa resposta tem de ser dada com mais responsabilidade pelo poder público.
 
Correio da Cidadania: Nas áreas de UPP, especificamente, o que poderia ser feito pra aprimorar tal modelo? Seria viável um controle social e comunitário de cada uma delas, com participação de membros eleitos da comunidade?



Marcelo Freixo: Não adianta querer apresentar soluções mágicas de fora, com algum iluminado que não mora no local em questão passando a fórmula correta de uma política de segurança. Até porque cada UPP tem uma situação diferente, de modo que tampouco alcançou um modelo perfeito, definitivo.
 
De toda forma, falta ouvir a sociedade, ouvir os moradores desses locais onde se colocam UPPs. Temos em tais lugares o Estado militar, a mediação militar, mas não temos a mediação civil com as pessoas. Uma paz vigiada e militarizada, portanto.
 
Claro que é importante não ter o tráfico ou as milícias dando as cartas nas comunidades, assim como é importante reduzir os homicídios e outros crimes, diminuindo os conflitos no local. Mas, no longo prazo, isso por si só não se sustenta.
 
Por exemplo, na Rocinha, após a chegada da UPP, o governo quis fazer um teleférico. Enquanto isso, a população quer saneamento, quer deixar de conviver com córregos a céu aberto. Mas o governo se recusa a ouvir a população. Assim, ela se impacienta e a revolta estoura em conflitos com a polícia ali instalada.
 
Sempre fui a favor do policiamento comunitário, porém, o que temos é apenas policiamento da comunidade.
 
Correio de Cidadania: Como avalia as posturas dos governos Paes e Cabral diante dessa virada política? Como acha que prosseguirão seus mandatos?
 
Marcelo Freixo: O governo Cabral está agonizando. Um governo que foi muito autoritário ao longo desses anos, no primeiro e no segundo mandatos, muito perverso com o funcionalismo público, muito arrogante na pessoa do governador, que deu muito pouco ouvido à sociedade, além de ter sido muito ausente, por ser um governador que gosta muito de viajar.
 
Nesse sentido, ele está pagando um preço pelo que construiu ao longo de tais anos. Não é de se ficar surpreso com o que está acontecendo na cidade e estado. Não é à toa que no Rio de Janeiro o movimento social prossegue muito intenso, diferente do que ocorre pelo Brasil. A razão de esse movimento continuar tão intenso no Rio de Janeiro é exatamente o perfil do governo Sergio Cabral. Não é diferente do prefeito Eduardo Paes, mas o movimento segue intenso no Rio, sem dúvida, graças ao perfil do governador Sergio Cabral.
 
Correio de Cidadania: Diante da extensão e intensidade que vêm atingindo os manifestos populares e as ocupações no Rio, você enxerga a cidade como um laboratório e eixo referencial da luta social, e de classes, do país?
 
Marcelo Freixo: Da mesma maneira que o Rio de Janeiro serviu de laboratório do capital para uma cidade-investimento, uma cidade-negócio, elitizada por remoções e grande investimento de capital, seguido de um processo muito forte de privatizações e ausência de maior participação da sociedade civil, hoje também é laboratório da resistência a esse modelo de cidade.
 
Em entrevistas passadas, falava do Rio como laboratório de cidades do capital. E hoje é um laboratório de cidade rebelde, de cidade que se indigna e manifesta contra isso. É interessante perceber esses dois tipos de laboratório e a articulação entre eles.
 
Correio de Cidadania: Cabral já sinalizou recuos nas ideias de privatização do Maracanã, demolição de seu complexo esportivo e também do Museu do Índio. Acredita na possibilidade dessa reversão?
 
Marcelo Freixo: O governador já está sendo apelidado de marcha à ré. Nunca vimos recuar tanto. É isso aí. Nossas pautas estão todas, de uma hora pra outra, sendo rapidamente atendidas pelo governador. Não é um surto de humildade ou de consciência política. É pânico, medo, dos movimentos sociais. É isso que ocorre. Já recuou da destruição do Célio de Barros e do Julio Delamare (estádios de atletismo e natação dentro do complexo do Maracanã); já recuou de demolir a escola Arthur Friedenreich, também dentro do complexo do Maracanã; já recuou de derrubar o Museu do Índio; já recuou da destruição do quartel general da polícia militar, outro patrimônio histórico.
 
Ele está recuando em todas as pautas que apresentamos ao longo de todos os últimos anos. E recua também da privatização do Maracanã.
 
Mas vamos insistir com as nossas pautas de sempre, ficar na luta, porque ele faz isso a fim de esvaziar a pauta e não ser deposto, não sofrer processo de impeachment. Mas é muito difícil que consiga resgatar qualquer credibilidade política no Rio de Janeiro.
 
Correio de Cidadania: Em face dessa nova conjuntura histórica que se abriu,  você acha factível a inviabilização do mundial de futebol no Brasil, como sugerem alguns ativistas? No caso mais provável de sua realização, como pensa que poderão agir e reagir os movimentos sociais e populares antes e durante o evento?
Marcelo Freixo: A Copa do Mundo atende aos interesses econômicos da FIFA, que não são os mesmos interesses da sociedade. Foi a mesma coisa na África do Sul e não é à toa que os endereços das próximas Copas são Rússia e Catar, locais onde os negócios da FIFA podem acontecer mais facilmente, com menos interferência do conjunto da sociedade. O que aconteceu no Brasil pegou todos de surpresa.
 
O problema é: que Copa do Mundo e a serviço de quem? Se fosse pra trazer melhorias na saúde, na educação, nos transportes, tornar o entretenimento mais acessível através do futebol, ninguém estaria reclamando da Copa. O problema é a forma como se dá o processo e a favor de quem.
 
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

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