Por Valério Arcary
O STF decidirá, finalmente, se deverá ou não acontecer um segundo julgamento do mensalão. O mais provável é que se pronuncie a favor dos embargos. A cúpula do PT admite que praticou crime eleitoral de Caixa 2, mas adverte que não usou dinheiro público para garantir maioria de votos no Congresso para o governo Lula. Reivindicam o benefício da dúvida. Esta argumentação é hipotética. É, também, precária, incerta e duvidosa. Ou seja, quase insustentável. Tem como objetivo único conseguir uma redução das penas para evitar a prisão de alguns de seus líderes em regime fechado, ou seja, a máxima humilhação. Que seria uma derrota simbólica importante.
Paradoxalmente, a decisão de um segundo julgamento e a possível redução de penas favoreceria a cúpula do PSDB. Estão preocupadíssimos, com razão, com o julgamento do mensalão mineiro, articulado em 1998, pelo mesmo Marcos Valério que depois foi o braço direito de Delúbio Soares. O julgamento do tucanoduto está previsto para 2014. Deve se transformar em um pesadelo para Aécio Neves, o herdeiro político de Eduardo Azeredo, que foi presidente nacional do PSDB depois de deixar o Palácio da Liberdade em Belo Horizonte.
Quando a direção do PT decidiu, por iniciativa direta de Lula na campanha de 1994, aceitar dinheiro das grandes corporações, o destino do PT estava traçado. O vale tudo eleitoral tinha, desde o início, um endereço trágico. Era, no fundo, só uma questão de tempo para que o PT evoluísse do financiamento “legal” dos monopólios para um sistema de caixa dois – a exemplo dos partidos tradicionais – e, depois, para a transferência de recursos arrecadados para os partidos aliados, o sistema de mensalão para assegurar maioria no Congresso, culminando com o enriquecimento de alguns de seus chefes, o que é sórdido. A direção do PT fez em dez anos um trajeto que a socialdemocracia levou cem anos para completar. Mas, tudo isso foi, também, uma evolução triste.
Os líderes do PT que estiveram à frente da operação financeira que culminou na fraude organizada por Marcos Valério junto aos bancos, articulada por Delúbio Soares e pilotada por José Dirceu, não merecem, portanto, solidariedade alguma. Entretanto, ao mesmo tempo, é desprezível, abjeta, e repulsiva, a hipocrisia que cercou o circo do julgamento do mensalão no STF. Porque a direção do PT não fez nada, absolutamente, nada de novo na vida política nacional.
Capitalismo e corrupção
Recordemos, então, o que a história e o marxismo nos deixaram como fundamentos “graníticos” sobre a corrupção. Primeiro, o mais importante. Nunca existiu capitalismo sem corrupção.
Capital e Estado estiveram sempre unidos através das mais variadas cumplicidades. Desde o alvorecer das pioneiras Repúblicas italianas, quando a Europa recuperou ao Islã o controle das lucrativas rotas comerciais do Mediterrâneo, passando pela conquista da América pelas Coroas ibéricas, sem esquecer os quase 150 anos de disputa entre Londres e Paris pela supremacia no mercado mundial: a corrupção estava lá, em todos os portos, em todos os tribunais, em todas as Cortes, em todas as línguas. A corrupção nunca foi privilégio dos latinos, nem dos chineses, nem dos árabes. Desde o século XIX falou, sobretudo, o latim moderno, o inglês. Comprando favores, deslocando concorrentes, driblando as leis, subornando autoridades, obtendo cargos. A força do dinheiro abrindo as gavetas do poder, e o domínio do Estado favorecendo os cofres da riqueza.
Quando argumentamos que capitalismo e corrupção sempre caminharam de mãos dadas, muitos nos perguntam se a corrupção não seria inevitável em qualquer sociedade. Porque, afinal, ninguém ignora que tanto na URSS quanto na China as burocracias estatais se regozijavam em privilégios, driblando as suas próprias leis. A corrupção não seria expressão das incoerências sombrias da natureza humana?
Os socialistas defendem que não existe fatalismo na condição humana que nos condene a corrupção. Assim como existiram sociedades que desconheceram a exploração do homem pelo homem, ignoraram, também, a corrupção. A corrupção é uma doença econômico-social, e se explica em função de circunstâncias históricas. Ninguém é, naturalmente, corruptível ou corruptor. Algumas pessoas transformam-se em corruptos, em função de cálculos de risco e benefício.
A percepção de que, no Brasil, a apropriação privada do Estado pelo mundo dos negócios teve sempre na sua raiz a impressionante desigualdade econômica e social, é chave para mantermos o sentido das proporções diante do colapso moral da direção máxima do PT. Ao se transformar, a partir de 1988, em um partido que se credenciava para a gestão do Estado sem ameaçar o capitalismo, o PT selou o seu destino.
Um programa de adaptação à gestão de um capitalismo que quase não cresce, ou cresce muito devagar e cheio de desproporções, em uma sociedade em que a desigualdade social permanece obscena, e na qual a mobilidade social vem diminuindo há um quarto de século, ou seja, um reformismo quase sem reformas, não poderia evitar a degeneração ética. Ensina a sabedoria oriental que o peixe morre pela boca. Já o Padre Antonio Vieira dizia que o peixe apodrece pela cabeça. O marxismo alerta que a cabeça não é imune à pressão do chão que os pés pisam.
O PT escolheu um caminho de socialdemocratização que já tinha sido trilhado na América Latina por muitos outros, até por organizações que encabeçaram revoluções democráticas, como os sandinistas. Se, mesmo os partidos que se formaram na severidade das condições da luta armada contra ditaduras – como a FSLN, os Tupamaros ou a Farabundo Marti – quando aceitaram se transformar em partidos eleitorais, se descobriram vulneráveis diante da pressão política e social da democracia liberal, parece inescapável que o PT, que já nasceu como um partido eleitoral, seria presa fácil da corrupção endêmica do Estado brasileiro.
O domínio do Capital sempre foi a associação legal e/ou ilegal, portanto, sempre ilegítima e imoral, da riqueza com o poder. Todos os partidos comprometidos com o regime democrático-eleitoral e, por isso, financiados pelo capital, foram aliciados, em todos os tempos e lugares, pela força do dinheiro. Nos últimos cem anos, à escala mundial, a imensa maioria dos instrumentos da representação política dos trabalhadores, no centro ou na periferia, quando se consolidaram regimes democráticos, foram absorvidos pela pressão do eleitoralismo.
A socialdemocracia europeia antes da I Guerra, ou os partidos eurocomunistas depois dos anos 60, muito antes do PT, confirmaram que é difícil, politicamente, e complexa, social e organizativamente, a construção de reservas ou filtros de imunidade diante da pressão de forças sociais hostis. Degeneraram, absorvendo, além dos métodos do eleitoralismo, os seus vícios. Seus dirigentes, fossem do SPD na Alemanha e do Labour na Inglaterra, ou do PCF na França e do PCI italiano, experimentaram, primeiro nos parlamentos, depois com o ministerialismo, um processo de ascensão econômica e acomodação social irrecuperável
Adaptação política e degeneração burocrática
Admitamos, contudo, que os privilégios dos aparelhos socialdemocratas foram a ante-sala de aberrações ainda mais graves. Não bastassem as desprezíveis excentricidades da burocracia russa, como a coleção de automóveis de Brejnev, ou a cômica sucessão de tipo monárquico, em nome do socialismo, do regime totalitário na Coréia do Norte, a esquerda do século XX viveu a degradação do assalto dos sandinistas às mansões na Nicarágua.
Pressões sociais em sociedades desiguais nunca devem ser, portanto, subestimadas: os que se deixam confundir politicamente, assimilam os métodos da política burguesa – em que tudo são mercadorias, incluindo o voto – e, finalmente, se rendem a um modo de vida de ostentação. É o que confessam os principais líderes petistas quando, de maneira até grotesca, invocam absolvição porque estavam agindo de acordo com as “regras do jogo”.
Quando o publicitário que criou o “Lulinha paz e amor” confessou seus pecados, ironia da história, enfiou uma adaga no coração da direção do PT. O enquadramento histórico parece incontornável, sob pena de qualquer análise sucumbir aos impressionismos de conjuntura. Só uma perspectiva mais ampla permitirá explicar como o partido político que foi a expressão eleitoral do movimento operário sindical e da maioria dos movimentos sociais brasileiros nos anos 80, se transformou, a partir de sua mais alta direção, irrecuperavelmente, neste espantoso amálgama de arrivistas e vigaristas.
O tema da burocratização dos partidos de trabalhadores assalariados em sociedades urbanas permanece um fenômeno polêmico. Ao analisar a socialdemocracia de cem anos atrás, Lenin recorreu ao conceito de aristocracia operária para tentar explicar a crescente diferenciação social no mundo do trabalho na passagem do século XIX para o XX, e tentar compreender porque uma maioria das bases sociais e eleitorais da socialdemocracia apoiou seus respectivos governos, quando do início da guerra de 1914.
No entanto, é menos lembrado que Lenin previu que esse apoio seria efêmero, mesmo entre os setores da classe trabalhadora que obtiveram concessões na etapa histórica anterior. A “aristocratização” de um segmento da classe operária era compreendida pela esquerda marxista como um fenômeno, essencialmente, econômico e social, enquanto o agigantamento do aparelho sindical e das frações parlamentares absorvidos pelo Estado era discutido como um processo, essencialmente, político-social.
Aristocracia operária e burocracia sindical-parlamentar não eram identificadas como o mesmo fenômeno social, porque a aristocracia, um conceito relativo às condições materiais e culturais de existência da classe trabalhadora de cada país, permanecia sendo um setor de classe, ainda que privilegiado. Enquanto a burocracia dos aparelhos que se apoiam nos trabalhadores seria uma casta exterior ao proletariado. A experiência do PT e da CUT é uma confirmação quase caricatural deste prognóstico.
Valerio Arcary é professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) e doutor em História pela USP.
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