Parte 1
Nos países avançados, em que a crise econômica bateu mais forte e trilhões de dólares foram drenados do orçamento público para o sistema financeiro, o desemprego e o desalento dos jovens levaram às ruas e praças das grandes cidades indignados e occupies. Nos países árabes, foi o “basta!” (kifaya) às ditaduras e às diversas formas de opressão militar-religiosa. Mas, qual o motivo das revoltas recentes no Brasil, país “emergente” e até há pouco tempo “sensação” da economia global? Pico da inflação, redução dos níveis de crescimento, escândalos de corrupção são causas insuficientes para justificar milhões de pessoas nas ruas nos atos diários de junho em todo o país, sobretudo nas grandes cidades, e que seguem ainda hoje, esparsos, mas latentes.
Afinal, vivíamos no Brasil da última década certo nível de crescimento econômico continuado; aumento do emprego, do consumo e do crédito; mobilidade social, programas compensatórios de transferência de renda; incentivo ao “empreendedorismo” de todos os tipos; recordes na produção, de carros a commodities; status de potência agrícola e mineral; descoberta das reservas do pré-sal com a miragem da renda petroleira irrigando o país; deixamos de ser devedores para sermos credores do FMI, de alunos passamos a exemplo do Banco Mundial; barramos a ALCA, ampliamos o Mercosul, levamos nossas empresas para a África e alcançamos a presidência da OMC; para arrematar, ganhamos a corrida para hospedar espetáculos globais, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Enfim, o país deixou de ser coadjuvante e tornou-se um dos protagonistas no concerto mundial das nações.
Se é assim, como, de uma hora para outra, tudo que ia bem parece ir mal? Muitas coisas desmentem ou relativizam esse cenário cor-de-rosa do Brasil emergente, mas talvez a principal delas seja a inviabilidade crônica de nossas metrópoles. O crescimento econômico e os níveis recordes de investimento não melhoraram as condições urbanas, mas, pelo contrário, levaram ao limite do impossível a vida nas cidades. Esse é um dos paradoxos de fundo na origem do nosso “basta!”.
Se a forma urbana das metrópoles pode dizer algo sobre a sociedade brasileira e os sentidos da nossa (de)formação nacional, ou de nossa precária e incompleta cidadania, não é preciso ser especialista para perceber que o Brasil, como projeto de civilização – visto pelo ângulo das nossas cidades –, está longe de resultar em algo integrado, coerente e igualitário. Há um avanço da barbárie urbana concomitante ao avanço da cidade-mercadoria. A maioria de nossas principais cidades vive situações recorrentes de caos e calamidade, apesar da abundância relativa recente. Nos últimos anos, vivemos o boom imobiliário e o boom automobilístico – ambos impulsionados pelo governo federal – que colaboraram não para o crescimento da qualidade da vida urbana, mas para sua crescente deterioração.
Aquilo deu nisso
Temos, supostamente, as leis e os instrumentos urbanísticos considerados os mais avançados do mundo, um Ministério das Cidades, o Estatuto das Cidades (nossa lei da Reforma Urbana), planos, conselhos, fundos, em vários níveis administrativos. Tudo resultado de anos de luta popular, mas também da sua institucionalização, graças à prevalência de certa tecnocracia espalhada em centenas de administrações públicas, universidades, gabinetes e ONGs, que canalizou a ação direta de desobediência civil (o ciclo das ocupações) na direção da prática “responsável” de quem propõe novos instrumentos legais, participa de conselhos de fundos públicos e seus programas governamentais, tudo dentro da ordem (o ciclo institucional).
Constatamos hoje que a quase totalidade desses instrumentos legais não é aplicada, sobretudo no que diz respeito a garantir a função social da propriedade, sobretaxar grandes propriedades privadas, imóveis abandonados ou especulativos, forçar a urbanização de terrenos ociosos, cobrar a dívida ativa de devedores por meio da dação de imóveis, combater os crimes ambientais realizados pelos ricos, barrar despejos forçados fazendo valer o direito inalienável à moradia (pela Constituição Federal, o direito à propriedade privada no Brasil é relativo) e, por fim, orientar e planejar o crescimento das cidades em favor das maiorias, da qualidade de vida dos cidadãos e contra sua apropriação como mais um negócio do capital, agora em sua fase financeira e globalizada.
O Programa Democrático-Popular e seu capítulo da Reforma Urbana não apenas não realizou o que prometeu, mas deu no seu contrário, numa Anti-Reforma, ou numa privatização/mercantilização crescente das cidades, tratadas como mais um ramo dos negócios. A face social da Reforma Urbana democrático-popular foi sendo recalcada a favor de soluções de mercado, das parcerias público-privadas e da gestão focalizada da pobreza – receituário do Banco Mundial bem aplicado pelo Brasil (hoje na condição de formulador das mesmas receitas e seus ajustes).
Memória
Façamos um breve recuo histórico. Nos anos 1980 e início dos 1990, houve um primeiro ciclo da Reforma Urbana, ainda menos institucionalizada, que esteve combinada com as primeiras administrações municipais do PT, a ação dos núcleos de base e das comunidades eclesiais de base, com suas diversas associações de moradores, a formação dos movimentos urbanos e suas articulações, entre elas com um pensamento renovado na universidade, com seus laboratórios e ações de campo em favelas e periferias. Foi quando se reconheceu, pela primeira vez, nas políticas públicas e na academia, a cidade “oculta”, fora dos planos e leis, autoconstruída pelos trabalhadores.
Surgem naquele momento políticas dirigidas a essas áreas, fora da cidade do mercado, e que em muitas capitais abrigavam (e ainda abrigam) mais da metade da população. O novo urbanismo democrático-popular promove inversões de prioridades, projetos e obras de urbanização de favelas – no lugar da remoção forçada, que era a prática comum anterior –, a regularização fundiária, a construção de praças, escolas, saneamento e drenagem urbana, a produção de moradias por mutirão e autogestão, com qualidade superior às construtoras, políticas de assistência social de novo tipo, com experiências de economia solidária, além dos orçamentos participativos, que caracterizavam o “modo petista de governar”.
Iniciativas que foram naquele momento importantes referências da transformação social, de diálogo entre intelectuais, ativistas e trabalhadores, mas que passaram a ser esvaziadas de sentido político e transformadas numa espécie de tecnologia de gestão de massas urbanas empobrecidas. A ênfase na participação, da construção das casas à peça orçamentária, perdeu o sentido de construção de poder popular e tornou-se uma forma de atrelar os movimentos à agenda dos governos e ocupar mais tempo que o necessário dos militantes em inúmeras reuniões e representações pouco efetivas, enredados em decisões secundárias dentro de um jogo em que as cartas, frequentemente marcadas, já estavam sendo dadas pelo setor privado.
O movimento pela Reforma Urbana, mesmo na sua fase mais criativa, também não chegou a ultrapassar algumas barreiras fundamentais, sobretudo não avançou no questionamento da propriedade privada do solo urbano – que por 350 anos da história brasileira foi de livre acesso. A terra tornou-se cativa, isto é, foi privatizada no momento em que a escravidão ruía e que os homens cativos eram alforriados. A Lei de Terras, de 1850, ano em que o tráfico negreiro tornou-se ilegal, antecipava a despossessão dos trabalhadores assalariados em relação a terra para morar. O sistema se modernizava e armava o jogo para a venda da força de trabalho como único meio para alcançar a moradia e qualquer outro bem de subsistência: o trabalhador assalariado deveria pagar pela terra cativa, que até então fora livre.
O sonho cooperativo
No programa da Reforma Urbana democrático-popular, a propriedade privada não foi questionada e combatida. Ao contrário, deveria ser regulada e distribuída a todos. Contra o latifúndio urbano a solução era o minifúndio privado, como na Reforma Agrária. Na prática, isso significou, mesmo nas experiências mais avançadas, projetar e construir loteamentos convencionais, em geral com lotes abaixo do mínimo permitido pela legislação, único meio de equacionar a compra da terra, até a construção de prédios em condomínios fechados. A propriedade privada seguiu ditando o modelo (da política à arquitetura), pois o objetivo não foi superá-la, mas reparti-la a todos.
Pleiteava-se o lote, a casa e alguma infraestrutura urbana. Avançou-se pouco em relação aos espaços coletivos, em direção a novas formas de produção, educação e saúde sob gestão dos movimentos populares, como ocorreu com mais frequência nos assentamentos de Reforma Agrária. No máximo, ao lado das moradias, erguia-se um centro comunitário, uma padaria, uma quadra esportiva e, se possível, guaritas e muros.
Formas de propriedade pública e estatização do solo eram recusadas (com exceção do caso especial de Diadema, e de poucos projetos de aluguel social em São Paulo, tidos hoje como “equívocos”), vistas como planificação antidemocrática, típica do socialismo real ou de regimes autoritários, como nossa ditadura militar. Contudo, a base da Reforma Urbana europeia e de seus Estados de bem-estar social também foi o controle parcial da terra pela propriedade pública, com moradias estatais de aluguel subsidiado, construídas e reguladas pelo governo, como forma de alocação planejada e relativamente igualitária das populações nos territórios. Tal modelo, como se sabe, supostamente em crise desde meados dos anos 1970, foi parcialmente desmontado por políticas neoliberais (a Inglaterra de Thatcher, por exemplo, chegou a privatizar todo seu parque público de moradias).
Mesmo formas de propriedade coletiva ou cooperativada também não foram amplamente defendidas e testadas pelos ativistas da Reforma Urbana. O influente modelo uruguaio de construção de moradias por ajuda mútua em suas cooperativas de habitação chegou ao Brasil pela metade: veio o trabalho em mutirão, mas sem a propriedade coletiva, ou seja, o momento de produção das casas era associativo, mas seu consumo fragmentado em propriedades privadas individuais (e os espaços comunitários, culturais e educacionais ficaram aqui atrofiados). A insurgência e autogestão dos trabalhadores não tiveram como prosperar, cerceada por um sistema de valores e práticas que lhes era contrário, pois dependia, depois do mutirão, da expansão do ato cooperativo para a propriedade coletiva em todos os níveis.
Pedro Fiori Arantes é arquiteto e urbanista, integrante do coletivo Usina e professor da Unifesp.
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