por Márcio Santilli
Do Instituto Socioambiental
Nesta semana, o Ministério de Justiça (MJ) fez circular entre os membros da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) uma minuta de portaria ministerial que acrescenta vários procedimentos administrativos ao processo de demarcação das terras indígenas, já regulado pelo decreto 1.775/96, ainda em vigor. A portaria, que deve ser publicada nos próximos dias, multiplica os ritos burocráticos e formaliza a intervenção de quaisquer interesses eventualmente contrariados desde a etapa inicial do processo, a de identificação das áreas de ocupação tradicional.
Essa fase inicial implica a constituição de grupo de trabalho, coordenado por um antropólogo com formação acadêmica reconhecida e integrado por outros técnicos – cartógrafo, biólogo, indigenista, agrônomo, conforme o caso – que identifica as referências de ocupação tradicional indígena, características ambientais e situação fundiária, além de formular uma proposta de limites a ser submetida às instâncias de decisão política – o MJ e a Presidência da República – para posterior demarcação física, homologação e registro cartorial. Esse grupo, de caráter eminentemente técnico, pode e deve produzir informações sobre interesses não indígenas incidentes na área em estudo, mas não lhe compete – e nem ele dispõe de legitimidade, poder administrativo ou proteção física – para rechaçar ou pactuar com terceiros interessados.
Segundo a minuta, o grupo “técnico” seguiria sendo coordenado por antropólogo, mas constituído agora por outros quatro membros, sendo um deles procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e os demais com formação em cartografia, topografia e meio ambiente. A proposta diz, ainda, que os integrantes do grupo devem ser prioritariamente funcionários públicos, podendo ser contratados em caráter privado sob condições. A especificação da formação técnica de cada um dos técnicos e, especialmente, a obrigatoriedade de inserção da AGU dificultarão ainda mais a criação e funcionamento de novos grupos de trabalho, que passarão a depender da duvidosa disponibilidade desses membros.
Ainda segundo a minuta, poderão participar das atividades do grupo representantes da comunidade indígena local, mas também dos municípios, dos estados e de nove ministérios, que deverão ser notificados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para indicar seus representantes em prazo determinado e cuja participação deve ser formalizada por portaria. Em suma, poderão participar do grupo até 20 integrantes, a maioria com interesses contraditórios em relação ao objeto do trabalho.
O que hoje ocorre é que a Funai encontra dificuldade crescente para recrutar até mesmo antropólogos para coordenar novos grupos de trabalho, pois é exíguo o número de profissionais do seu quadro e não tem sido possível contratar antropólogos vinculados às universidades ou a outros órgãos públicos, por caracterizar dupla remuneração. Não raro se vê antropólogos coordenando grupos de trabalho em caráter voluntário, sem remuneração (com direito apenas ao pagamento de despesas), e que, por isso mesmo, prestam serviço em períodos de férias ou quando têm disponibilidade, não podendo ser submetidos a prazos específicos para a entrega de relatórios e de outros produtos.
Nessas condições, tem sido cada vez mais difícil recrutar coordenadores e outros integrantes para os grupos de trabalho, assim como alocar, em cada caso, os antropólogos mais qualificados ou que tenham experiência, relações e informações acumuladas sobre o povo indígena e a região em questão. A nova portaria não se reporta a nenhuma dessas dificuldades objetivas, mas as multiplica, acrescentando responsabilidades de mediação de interesses contrariados que são estranhas à formação técnica dos profissionais requeridos e implicam em aumento exponencial de riscos pessoais, profissionais e políticos.
Além disso, vários dos procedimentos adicionais propostos na minuta implicariam em custos e despesas adicionais, mas o texto não provê solução para isso. Pelo contrário, explicita que a constituição de novos grupos de trabalho ficará subordinada “às disponibilidades orçamentárias”, que são exíguas e incertas, mas que certamente deveriam ser reforçadas caso pretenda-se melhorar a qualidade dos trabalhos de identificação de Terras Indígenas. Como o ritmo das identificações já tem sido lento, prolongando conflitos, é lícito supor que as dificuldades técnicas, burocráticas, políticas e orçamentárias que seriam acrescidas pela portaria poderão paralisar de vez esse processo.
Responsabilidade política
O ponto é que a responsabilidade de mediação política é do governo e, no caso, principalmente do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e a sua transferência para um grupo técnico, ou para a figura de um antropólogo, é uma completa aberração. Cardozo já tem suas gavetas abarrotadas de processos de demarcação, que aguardam decisão, por vezes, há anos. Tem sido incompetente para equacionar o pagamento de indenizações e para conduzir as negociações junto a proprietários rurais e ao governo do Mato Grosso do Sul, principal foco atual de conflitos envolvendo a demarcação de Terras Indígenas e chegou a ordenar a invasão de aldeias de índios Munduruku, no Pará, pela Força Nacional de Segurança, que matou um índio e feriu outros.
A edição da portaria aventada, ao final da sua gestão, seria uma consagração negativa definitiva. Se quisesse, o ministro poderia mirar-se no exemplo do seu colega, Pepe Vargas, ministro do Desenvolvimento Agrário, que editou uma portaria no início do ano, exigindo providências adicionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a instrução dos processos de desapropriação para a reforma agrária, mas teve que revogá-la no mês passado para não terminar o ano com nenhuma desapropriação, recorde histórico insuperável. Cardozo, que já vem nessa rota há três anos, ameaça concluir a era de omissões que protagonizou, deixando, como herança, um tiro no pé do próprio sucessor.
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