segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

E se a ‘lista suja’ do trabalho escravo não existisse?

Por Maurício Hashizume
Da Repórter Brasil 
 
  
Neste ano que se encerra, o cadastro de empregadores flagrados em fiscalizações de combate ao trabalho escravo no Brasil completa 10 anos. A “lista suja” do trabalho escravo, como ficou conhecida, foi criada pelo governo federal por meio de uma portaria do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em novembro de 2003. Desde então, vem sendo atualizada (e ampliada) regularmente pelo Executivo – apesar das inúmeras tentativas de deslegitimá-la.
 
Sim, é exatamente o que você está pensando. “Lá vem mais um daqueles textos banais construídos a partir de efemérides”. Certo, a questão dos “aniversários redondos” talvez esteja realmente muito batida, mas o que se pretende aqui é estimular reflexões a partir de uma data marcante. Afinal, muitas águas rolaram durante a última década.
 
O exercício proposto a partir dos dez primeiros anos do cadastro é bastante simples: e se a “lista suja” do trabalho escravo não existisse? Seguem abaixo cinco conquistas interconectadas que, em grande medida, se tornaram possíveis a partir da adoção, sustentação e divulgação desse instrumento sustentado pelo poder público.
 
Realidade
 
A realidade da exploração do trabalho escravo no Brasil seria, no mínimo, mais “turva”. A ausência de um painel oficial, aberto e acessível de pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas administrativamente em decorrência de inspeções que encontraram trabalhadores e trabalhadoras em condições análogas à escravidão restringiria o acesso a informações de interesse público, que provavelmente ficariam “escondidas” nas malhas da burocracia interna governamental. Com menos transparência, o conhecimento da população sobre a situação do problema seria menor.
 
Relações de trabalho
 
As relações de trabalho no campo e na cidade, especialmente em casos envolvendo grupos em situação de vulnerabilidade (migrantes, estrangeiros etc.) seriam ainda um pouco mais favorável ao empregador.
 
Sem a possibilidade de sofrer qualquer tipo de exposição pública pela exploração de mão de obra escrava, os empregadores teriam uma preocupação a menos. Em variadas circunstâncias, o risco de ter o nome incluído no temido cadastro foi citado por fazendeiros e empresários de distintos portes e setores, por exemplo, como um aspecto importante a ser evitado.
 
Pacto Nacional
 
O Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, criado em 2005, dificilmente existiria se não houvesse a “lista suja” do trabalho escravo. Levada a cabo por uma interlocução entre entidades civis que atuam na área e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a iniciativa busca comprometer empresas e associações no sentido de cortar relações econômicas com agentes envolvidos em flagrantes e de promover ações internas e externas de incentivo ao combate da violação de direitos fundamentais. Inúmeros casos envolvendo companhias privadas ganharam projeção maior por conta do Pacto Nacional.
 
Incômodo
 
O incômodo das entidades patronais – com destaque para organizações ruralistas – com a articulação interinstitucional dedicada ao enfrentamento do trabalho escravo seria provavelmente reduzido.
 
Considerada como uma das relações institucionais hoje existentes que mais trazem constrangimento ao patronato nacional, a “lista suja” está no cerne das reclamações da larga e poderosa bancada ruralista instalada no Congresso Nacional.
 
Daí a recorrente reação da parte dos grandes produtores rurais: tanto impedindo punições mais duras a quem comete o crime como tentando fragilizar o “conceito” de escravidão.
 
Reconhecimento
 
O reconhecimento do conjunto de medidas voltadas ao combate ao trabalho escravo no Brasil não teria a projeção internacional que atingiu na atualidade.
 
O cadastro é uma peça-chave no sistema montado pelo país, que tem na estruturação dos Grupos Móveis de Fiscalização, no funcionamento da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e na definição dos dois Planos Nacionais de Erradicação do Trabalho Escravo (2003 e 2008) alguns de seus outros principais pilares.
 
Nos últimos anos, o “pacote” brasileiro, a despeito de suas lacunas e limitações, vem merecendo destaque em relatórios globais.
 
Seriam possíveis muitas outras “suposições” relacionadas à inexistência do cadastro mantido por uma nova portaria (n° 2/2011), agora interministerial, assinada pelo MTE e também pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR).
 
Grande parte dos conflitos referentes à vergonhosa prática do trabalho escravo no Brasil, envolvendo a iniciativa privada e órgãos públicos, guarda alguma relação com a referida (e tão atacada) tabela.
 
E você, imagina como seria se a “lista suja” do trabalho escravo não existisse?

Nenhum comentário:

Postar um comentário