A semana começa com um marco histórico da luta social brasileira: o VI Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), no exato momento em que celebra seus 30 anos. Como anunciado, trata-se de um momento de autocrítica e reflexão, de um movimento que marcou época em sua luta por justiça no campo e agora se vê cercado pelos dilemas de um novo momento, entre eles, o abandono da reforma agrária – inclusive pelos próprios governos que sempre se identificaram com a luta pela terra.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, Gilmar Mauro, dirigente nacional do MST, faz um apanhado histórico, ressalta a trajetória do movimento, mas reconhece a urgência de se estabelecerem novas pautas diante da sociedade, atualizando os conceitos sobre a necessidade da reforma agrária no atual contexto político da agricultura brasileira.
“Não se trata de fazer uma reforma agrária que apenas distribua a terra, para disputar mercado com o agronegócio na base do produtivismo burro. Trata-se de mudar o modelo agrícola, os paradigmas tecnológicos de produção e, claro, de um reordenamento fundiário. Não é só distribuição de terra, mas é também assentar um novo modelo agrícola”, afirma.
A respeito do desempenho dos governos recentes, apenas desengano, refletido não só em números de desapropriações e assentamentos, mas também em um fato emblemático: “Não tivemos nenhuma reunião com a presidente Dilma, pra se ter ideia. Não que reunião resolva problemas, mas até com FHC tivemos várias reuniões. E com a Dilma, nenhuma. Em termos de desapropriação, é vergonhoso, não tem nada”, lamenta.
A entrevista completa com Gilmar Mauro pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Inicialmente, que balanço você faz dos trinta anos de história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra?
Gilmar Mauro: Há várias coisas importantes nos 30 anos do movimento. A primeira é que o MST é uma das organizações que está na história da luta pela terra e pela reforma agrária no nosso país. Um herdeiro, continuador de tais lutas. Também porque é uma das organizações camponesas de maior tempo de vida. Outras duraram muito menos, foram reprimidas etc. E, nesses 30 anos, como fruto do aprendizado histórico nas lutas do Brasil, desenvolvemos várias questões que, a meu ver, são importantes:
1) estabelecemos com clareza um rumo a ser seguido, qual seja, lutar pela terra e pela transformação social;
2) estabelecemos que isso será alcançado por meio da luta social, sem outra alternativa. Não porque gostamos ou achamos bonito, mas por ser uma condição histórica da classe trabalhadora e porque a luta é um processo pelo qual os trabalhadores se tornam sujeitos e protagonistas da própria história. Além das conquistas, é através disso que se dá um processo de elevação do nível de consciência e formação;
3) a partir desses dois grandes ingredientes, construímos uma organização interna para além das demandas da reforma agrária, pura e simplesmente. Tem-se um movimento que trabalha na educação, como, por exemplo, na alfabetização de jovens e adultos, mas também em parcerias, no sentido de que nosso povo, trabalhador, possa ter acesso ao ensino superior, pós-graduação etc. Desenvolvemos política de formação, de comunicação, temos uma escola própria... Enfim, para além da luta pela reforma agrária, desenvolvemos modos de produção nos assentamentos, a agroindústria, e assim por diante, com organicidade;
4) construímos um movimento com unidade interna. Cheio de contradições, como a vida é, mas unidade em torno de um projeto e de ações, o que nos permitiu fazer muitas lutas pelo Brasil;
5) construímos um movimento com articulação internacional. A própria Via Campesina é fruto desse processo que ajudamos a construir. Entendemos que as mudanças no Brasil são parte de mudanças estruturais em todo o planeta. E mesmo com outras contradições do movimento camponês, há pontos e projetos em comum. E ousaria dizer que, na atualidade, esta é uma das poucas organizações com funcionamento de escala planetária;
6) construímos um movimento que, além de colocar questões imediatas, coloca questões políticas, em busca de diálogo entre a luta econômica e a luta política. Buscamos trazer ao presente o que se quer no futuro. Exemplo: vamos a um congresso cuja metade do tempo será dedicada à autocrítica, pois é uma obrigação, uma tarefa política. Vamos discutir a participação das mulheres e todos os problemas que ainda temos. É um dos movimentos que, de fato, conseguem fazer tal exercício. É aquilo que a agricultura nos ensina: se quisermos colher abacate, temos que plantar abacateiro. Vamos tratar da abertura da participação às mulheres, da formação e integração de novos militantes etc.
Por fim, há a questão da dignidade e da auto-estima de uma categoria que, no Brasil, sempre foi relegada ao terceiro escalão, no caso, os sem terras. Portanto, através da luta e organização, exaltamos a dignidade humana das pessoas, ao mesmo tempo em que lhe damos um sentido político. O MST é um interlocutor e agente político no Brasil, fruto de seu processo de 30 anos.
Tem reforma agrária? Ainda não. Temos política de assentamentos, como fruto de muitas lutas e mortes.
Correio da Cidadania: Qual é, mais especificamente, a nova leitura do movimento para a reforma agrária no atual momento, face à citada hegemonia do agronegócio e à predominância de um modelo agrícola fortemente hegemonizado por grandes oligopólios?
Gilmar Mauro: É um debate que vocês, da chamada “mídia alternativa”, terão de nos ajudar a travar com a sociedade. Temos de colocar questões do tipo: que uso a humanidade, particularmente os brasileiros, quer dar à terra, à água, à biodiversidade, aos recursos naturais em geral? Se for o uso atual, de hegemonia do capital, não precisa de reforma agrária. Que tipo de comida queremos consumir? Se for o atual, talvez tampouco precise de reforma agrária. E que paradigmas tecnológicos de produção usaremos no próximo período?
A questão envolve o conjunto da sociedade. Se quisermos dar outro uso aos recursos naturais, com outro tipo de alimentação, se quisermos produzir de forma mais sustentável, com menos impacto ao meio ambiente, e, principalmente, colocando os trabalhadores no centro, diminuindo a penosidade do trabalho agrícola e, ao mesmo tempo, garantindo produtividade, a reforma agrária é uma das coisas mais modernas que existem.
No nosso modo de ver, esse é um debate necessário, pois não se trata de fazer uma reforma agrária que apenas distribua a terra, para disputar mercado com o agronegócio na base do produtivismo burro.
Trata-se de mudar o modelo agrícola, os paradigmas tecnológicos de produção e, claro, de um reordenamento fundiário. Não é só distribuição de terra, mas é também assentar um novo modelo agrícola. O debate de reforma agrária vai girar em torno disso no próximo período. Além, é claro, de muita luta e mobilização.
Correio da Cidadania: O que pensa sobre essa nova postura e como você tem enxergado, nesse sentido, o movimento neste atual momento histórico?
Gilmar Mauro: Houve mudanças. Diria até que, nos anos 2000, vivemos uma ascensão muito grande, com muitas lutas, havia muita gente acampando. Mas a própria mudança do país, com situação de pleno emprego relativo (emprego precário, evidentemente, mas com trabalho), faz com que, apesar de o sonho da reforma agrária continuar presente em milhões e milhões de pessoas, a situação seja diferente daquela da década de 90, pois a maioria das famílias não fica no acampamento o tempo todo. Porque está trabalhando, se sustentando. Aí, vem pros acampamentos nos finais de semana, nas assembleias, mas não tem aquela mesma disponibilidade que tinha nos grandes acampamentos que fizemos na década de 90. Levávamos gente pra participar de mobilizações urbanas, cursos de formação... Hoje, tem menos gente morando nos acampamentos, o que não significa ter diminuído a necessidade e vontade de luta dos trabalhadores.
A classe trabalhadora, na atual fase do capitalismo, não vive no campo, vive trabalhando fora. Aliás, é a única alternativa. Ou vende o que os outros produziram, ou produz e vende, ou vende a força de trabalho.
Os momentos de luta da classe trabalhadora são sazonais, uma greve aqui, outra acolá, assim por diante. No nosso caso, não é diferente. Digo tudo isso pelo seguinte: a partir de 1995, quando o movimento sindical de certa forma entrou em refluxo, pela derrota da greve dos petroleiros, nos colocamos em posição de certa arrogância. E continuamos avançando. A partir da década de 2000, por volta de 2002, 2005, vimos uma reestruturação produtiva no campo que nos colocou numa outra condição.
Penso que o MST faz uma releitura não para diminuir e parar de fazer luta, pelo contrário, é para buscar um salto de qualidade. No entanto, há outro ponto que gostaria de colocar aqui: embora existam críticas ao MST, vejo-o como um dos maiores movimentos sociais da atualidade, sem dúvidas. Vamos botar 15, 16 mil pessoas no nosso congresso, fazer uma autocrítica interna e jogar pra frente, junto com nossa categoria. Uma organização que não responde às necessidades de sua categoria, que não faz lutas, não tem sentido de existir. Prefiro errar coletivamente do que acertar sozinho.
E acredito que daremos o salto de qualidade no próximo período, tanto no debate da reforma agrária, como no processo de organização e politização da nossa própria categoria, além da legitimação do movimento, ao lado de outros setores da classe trabalhadora.
Correio da Cidadania: Como você descreve o atual quadro de disputa pela terra no nosso país, inclusive em termos de aquisição de terras por parte de grupos estrangeiros?
Gilmar Mauro: Esse é o grande nó que enfrentamos. Na década de 90, estávamos em ascensão e enfrentávamos o latifúndio atrasado. Hoje, com maiores dificuldades de mobilização, por se tratar de outra classe trabalhadora, enfrentamos um latifúndio mais moderno, do capital financeiro. Além da aliança do agronegócio com os meios de comunicação, o aparelho da grande mídia, uma situação difícil.
Do ponto de vista macroeconômico, tanto no governo FHC, como no governo Lula e na campanha de Dilma, esse mesmo modelo foi utilizado como forma de equilibrar o balanço de pagamentos. Ou seja, o Brasil tem um déficit muito grande nos chamados serviços – em função do pagamento de juros, da remessa anual de lucros das empresas etc. – e busca se equilibrar produzindo commodities. Produtos primários para exportação. Assim, o campo brasileiro passou a ser utilizado de forma predatória pelo grande capital, que, em tempos de crise, inclusive na Europa, se utiliza de processos de extração de minerais, domínio e controle de terras.
Portanto, é a grande briga, contra o grande capital, que por sua vez investe em agricultura, por ser mais um espaço de valorização e ganho de dinheiro. O problema é o modelo, e os governos recentes o adotaram, em busca de algum equilíbrio no balanço de pagamentos. Em detrimento de não se fazer a reforma agrária, em detrimento do solo, da água, com as monoculturas e assim por diante.
Esse é o grande desafio nosso do momento, porque não é uma luta só dos sem terras. Teremos de nos articular com o conjunto da sociedade brasileira, inclusive discutindo a essência do problema. Fazer o debate a respeito, como dito, de que uso queremos dar aos recursos naturais, o que queremos de produção agrícola. Será exigido um processo de formação e debates com a sociedade brasileira.
E digo com a maior tranquilidade: ninguém luta contra aquilo que não conhece, ninguém luta sem saber por quê. De modo que temos de convocar intelectuais, pedagogos, pra fazer o debate. Se a sociedade não fizer uma crítica e não entender qual a lógica do capital, e suas consequências à própria sociedade, ninguém vai lutar. Sem esse entendimento, dificilmente conseguiremos uma luta por outro projeto, um projeto socialista.
Vejo as coisas assim, essa é a forma de evitar transformar a luta, mesmo com caráter de esquerda, numa espécie de massa de manobra. Portanto, é preciso desenvolver o processo de formação, porque não acredito em mudanças sem tal trabalho. Mudanças profundas irão ocorrer no dia em que a classe trabalhadora assumir seu protagonismo nas lutas e na própria história.
Correio da Cidadania: Como avalia o governo Dilma frente a essas discussões e, especificamente, no que se refere ao seu posicionamento face ao agronegócio e à desaceleração no processo de reforma agrária?
Gilmar Mauro: Um dos piores em termos de reforma agrária, comparável ao período Collor. Não tenho nenhuma dúvida. Não tivemos nenhuma reunião com a presidente Dilma, pra se ter ideia. Não que reunião resolva problemas, mas até com FHC tivemos várias reuniões. E com a Dilma, nenhuma.
Já em termos de desapropriação, é vergonhoso, não tem nada. A grande política da Dilma para o campo é um pouco mais de crédito e a inserção de parte da pequena agricultura dentro do mercado. Mas eu diria que o projeto é buscar inserir alguns assentados, alguns agricultores, e transformá-los em “agronegocinhos”. E o restante da população fica com política de compensação social.
Reforma agrária zero. No final do ano, desapropriaram-se umas áreas e, se nada der errado, serão assentadas umas 4 mil famílias. É evidente nosso descontentamento, de todos os camponeses em geral, com a política de governo, principalmente nos últimos três anos.
Correio da Cidadania: Qual será a postura do movimento neste ano eleitoral, com diversos interesses político-econômicos desde já pressionando o governo por grandes concessões?
Gilmar Mauro: Pra ser bem honesto, o período eleitoral é bem difícil para nós. Respeitamos, a população participa... Mas são processos tão viciados que é difícil assumi-lo como possibilidade tática de grandes mudanças. Principalmente porque as eleições são muito marcadas e dadas. Portanto, será um ano difícil para nós, sem dúvida, ainda mais com a Copa do Mundo.
Normalmente, não nos envolvemos tão diretamente nas eleições. Atrapalha. Não temos debate algum e não queremos antecipar o assunto. Tanto que no nosso congresso não há programação para falar de eleição. Os temas serão reforma agrária, participação das mulheres, desafios da classe trabalhadora, desafios internos. Discutiremos questões internas e a luta política que faremos no próximo período.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.
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