Pela rejeição da proposta do governo. A greve dos professores nas
Universidades Federais tem que continuar.
* Por João Alberto da Costa Pinto
Penso que os professores federais em
greve deveriam rejeitar a proposta[1] apresentada pelo governo Dilma no último
dia 13 de julho, pelos motivos que apresento a seguir, antes, porém,
permitam-me uma resumida caracterização do que é a carreira de um professor no
magistério superior federal, considerando aqui a trajetória de um professor
doutor.
Para quem não sabe um professor com o
título de Doutor inicia a sua carreira no Magistério Superior federal
como Adjunto 01 e, de dois em dois anos pode progredir até
Adjunto 04. Depois, além das oito horas-aula semanais mínimas exigidas,
realização dos seus projetos de pesquisas e orientação de alunos na graduação
para trabalhos de conclusão de curso (e pesquisas PIBIC/PIVIC), se estiver
trabalhando em algum curso de Pós-Graduação Stricto Sensu na sua Universidade,
terá direito de pleitear promoção para a categoria de Professor Associado e
para isso passará por avaliações de produção (artigos e livros, etc.),
ministrar uma disciplina e ter orientandos no Mestrado e/ou Doutorado. Se
aprovado, segue evolução escalonada de Associado 01 até Associado 04, passando
também pelos mesmos interstícios de dois anos para superar cada etapa. Um
detalhe a observar é que nesse caso, a avaliação de progressão será feita por
uma comissão da Universidade externa à sua Faculdade de origem, são processos
que demoram vários meses para serem concluídos. No fim da vida, lá pelos
sessenta e tantos anos, se houver uma vaga na sua Faculdade, esse professor
Associado 04, se tiver paciência, poderá fazer um concurso público para
Professor Titular. Nas raríssimas oportunidades em que tais vagas
se disponibilizam, quase sempre esse valente professor enfrentará, no concurso,
concorrentes da sua própria faculdade e concorrentes de outras Faculdades e
Universidades, porque se trata de um concurso público nacional. Quase sempre,
nessas ocasiões, a Faculdade vive dias de grande agitação porque como estão
“todos uns contra os outros”, guerras de torcidas dos alunos orientandos de
cada professor em pugna manifestam-se pelos corredores, além das manifestações
de vaidades enlouquecidas que fazem tremer os bastidores das reuniões de
colegiado. E nessas reuniões quase sempre há gritos e frases assim: “a minha
obra é muito mais importante do que a sua!”. Enfim, depois de muitos anos nessa
solitária trajetória, se aprovado como Titular, esse intrépido professor
finalmente vira uma “borboleta”, a mais bela dos jardins da academia, é bem
verdade. Nessa altura da sua vida, o senhor Professor Doutor Titular respira
fundo, orgulhoso de si, sorri diante do espelho, para em poucos meses já estar
num caixão. E assim se vive uma vida.
O ingresso por concurso público às
Universidades Federais é predominantemente feito por Doutores para o cargo
de Adjunto, mas ainda há muitos concursos para Professor Assistente,
principalmente para as Universidades de estados da federação mais distantes do
eixo Rio-São Paulo que ainda é o eixo dominante da excelência acadêmica
nacional, e em menor escala, muito raros, os concursos para ProfessorAuxiliar (professores
apenas com a graduação). Para um Professor Assistente exige-se o título de
Mestre e atualmente a sua progressão também segue o interstício de dois anos
(de Assistente 01 até Assistente 04), mas neste caso, só passará a Adjunto se
tiver o título de Doutor (o mesmo vale para o Auxiliar, este só passará a
Assistente quando tiver o título de Mestre). Ainda há muitos professores
Assistentes no conjunto do Magistério Superior federal, mas o predomínio é de
Professores Doutores, professores Adjuntos, portanto, mas poucos Associados,
isto porque para ser Professor Associado, além do título de Doutor, repito,
esse professor precisa estar vinculado a um Programa de Pós-Graduação
Stricto-Sensu, e nem todas as Universidades Federais têm Programas de
Pós-Graduação disseminados, evidência maior dessa realidade acontece nas
Universidades mais “distantes” desse eixo acadêmico hegemônico. É comum o
argumento de que o governo na sua proposta de reorganização das carreiras
esteja a estimular a criação desses ambientes institucionais de pós-graduação
fora do eixo dominante, essa é uma “meia-mentira”. É importante ressalvar que
uma Pós-Graduação só começa a funcionar se aprovada pelo CAPES/CNPq, agências
de fomento controladas, evidentemente, por aqueles professores originados
desses centros dominantes de “excelência” acadêmica, e seria infantil imaginar
que poderia ser de outra maneira. Demoram-se muitos anos para que um Programa
de Pós-Graduação seja aprovado e autorizado a funcionar. Em suma, no quadro
descrito do Magistério Superior federal são raríssimos os Professores
Titulares, são maioria absoluta os Professores Adjuntos, e em menor proporção,
mas menor mesmo, os Professores Assistentes, Associados e Auxiliares.
O tão anunciado aumento “de até” 45%
que o governo Dilma apresentou aos professores em greve no dia 13 de Julho de
2012 atinge apenas a minoria reduzidíssima, mas reduzidíssima mesmo, dos
Professores Titulares em final de carreira. Consideremos aqui, para dar sentido
ao exposto, o salário de um Professor Doutor em início de carreira. Como
Adjunto 01, esse professor recebe atualmente R$ 7.300,00 (valores de março
2012, aqui arredondados), com a proposta do governo, a partir de janeiro de
2013 passaria a aproximadamente R$ 8.400,00; em janeiro de 2014 a algo em torno
de R$ 9.200,00; e em janeiro de 2015 a R$ 10.000,00. Isto é, o governo propõe
um aumento escalonado até janeiro de 2015 de mais ou menos32,5% sobre
o valor inicial de hoje, conclua-se, portanto, que para a maioria do Magistério
Superior federal o aumento proposto pelo governo até 2015 seria de um total de
32,5%. Para janeiro de 2012, esse aumento ficaria apenas em torno de 14%sobre
o salário atual. Os propalados 45% de aumento não atingem a imensa maioria dos
docentes do Magistério Superior federal, muito pelo contrário, atingem apenas
uma reduzidíssima minoria da categoria e mesmo assim só para janeiro de 2015.
Contudo, há outros detalhes muito mais graves a considerar nessa proposta do
governo.
Antes de seguir, peço-lhes que notem,
por favor, esta comparação simples e imediata, diante do que se oferece no
concurso público em aberto para a Receita Federal. Para esse concurso, o
salário inicial para qualquer graduado, se aprovado, será de R$ 7.900,00. Disse
anteriormente que salário inicial atual de um professor concursado com
doutorado é de R$ 7.300,00, mas comparem-se titularidades equivalentes: um
professor nas Universidades Federais, só com graduação (categoria de Auxiliar),
começa a carreira com R$ 2.800,00 reais. Mas vamos ao mais importante.
Um professor doutor adjunto ainda sem
vínculos com a Pós-Graduação deve obrigatoriamente dar oito horas-aula semanais
na graduação e ter projeto de pesquisa cadastrado em realização, além das
orientações citadas anteriormente. Se esse professor passar a trabalhar em
nível de Pós-Graduação, e se ainda conseguir ser aprovado como Associado deverá
ter as mesmas oito horas-aula mínimas, mas neste caso pode dar quatro dessas
horas-aula na Pós-Graduação e apenas quatro horas-aula na Graduação. Nesse
momento da carreira, além das aulas e das orientações (da graduação e da
pós-graduação) esse professor tem que obrigatoriamente escrever e publicar
livros e artigos em revistas especializadas, esses são os produtos das suas
pesquisas cadastradas junto à sua unidade. Dependendo da área de atuação desse
professor-pesquisador, os resultados da sua produção intelectual serão
naturalmente circunstanciados pelo tempo que os objetos de pesquisa podem
exigir. Por exemplo, num laboratório de análises clínicas pesquisas podem dar
resultados quase que imediatamente se o pesquisador estiver com os materiais em
mãos e muitas vezes esse é o seu principal problema, porque um laboratório tem
uma complexidade tecnológica de alto custo, com ferramentas muitas vezes
ausentes do mercado nacional. O tempo de pesquisa, em situação como essa, em
grande parte depende da capacidade produtiva do laboratório; já um historiador
ou um sociólogo tem que inevitavelmente “gastar” muito mais tempo individual na
construção dos resultados das suas indagações (pesquisa documental em jornais
antigos, por exemplo, reflexões conceituais detalhadas frente à tradição do
campo indagado), e numa comparação extremamente simplificada, os resultados do
pesquisador no laboratório podem ser apresentados num artigo de poucas páginas;
os resultados da pesquisa de um historiador nunca podem ser apresentados num
artigo de poucas páginas, exceto se for um artigo de revisão bibliográfica,
como consequência, esse pesquisador publicará menos artigos ou livros se
comparado com o pesquisador e sua equipe no laboratório. A natureza produtiva
das ciências define quantitativamente os resultados da produção intelectual de
cada (os resultados qualitativos só poderão ser aferidos por pares no mesmo
campo científico). Enfim, são professores-pesquisadores com trabalhos de
pesquisa resolvidos em tempos muito diferentes, produtos a mais ou a menos em
carreiras distintas, mas com a mesma caracterização institucional: são
professores doutores. O que sugere a proposta do governo? Aumentar a carga de
horas-aula para cada professor, das atuais oito horas para um mínimo de doze
horas-aula. O que poderia ser um detalhe é, na verdade, o ponto fulcral da
questão, e o que me parece ser o mais grave nesta proposta. Vejamos.
Não tenho nada contra as doze
horas-aula, aliás, particularmente já as ministro em alguns dos meus semestres
letivos. Disse acima que a maioria do corpo docente do Magistério Superior
federal é constituída por Professores Doutores na categoria deAdjunto.
Um professor-adjunto pode ou não dar aulas na Pós-Graduação, contudo, se quiser
avançar na sua carreira tem que inexoravelmente orientar pós-graduandos, além
de realizar suas pesquisas para os seus artigos e livros, sem estes, não
conseguirá manter-se como professor Associado, e muito menos
atrever-se ao pleito de um concurso para professor Titular. Esse é
o ponto chave que está em jogo nesta greve, o aspecto central que os
professores em greve devem manter de modo intransigente frente à ameaça
tecnocrática suicida do governo é a preservação dadisponibilidade do TEMPO para
a pesquisa, com a obrigatoriedade das doze horas-aula presenciais em sala de
aula, o tempo de pesquisa é dramaticamente reduzido já que quatro horas-aulas a
mais em sala de aula representam para o professor que as ministra uma
quantidade enorme de horas que terá que dispor para os alunos, para a
preparação das aulas, para as provas e trabalhos a corrigir, tempo, portanto,
impedido à pesquisa. Mas, além, da progressiva perda do controle do seu tempo
produtivo, sofre outro acinte administrativo por parte do Ministério de
Educação e Cultura (MEC). Atualmente, com o título adquirido, se for um
Doutorado, por exemplo, um professor-mestre Assistente passa automaticamente
para Professor Doutor Adjunto 01, na atual proposta de reestruturação da
carreira, esse direito pela titulação adquirida deixa de valer, porque o MEC
impõe, à sibilina, ao portador do novo título acadêmico um processo que define
como “de avaliação de desempenho de acordo com diretrizes estabelecidas pelo
MEC”. Não ficam claras quais poderiam ser essas “diretrizes” do MEC. Por fim, é
de se ressalvar que o ápice da carreira para o Magistério Superior, o acesso à
condição de Professor Titular, como determina a proposta do governo, estaria
disponibilizado para apenas 20% das vagas existentes na Unidade de Ensino de
origem dos possíveis candidatos. O cenário interno da guerra de “todos contra
todos” estaria assim institucionalizado. Note-se, portanto, que a existência
reduzidíssima de professores Titulares (os que receberiam então, em janeiro de
2015, os tais “45%” de aumento) é, pela documentação oficial da proposta,
sentenciada de fato à condição de fração “reduzidíssima” no cenário das
promoções possíveis na carreira de um docente do Magistério Superior federal.
A proposta do governo Dilma é
humilhante para com os professores, humilhante para com a carreira do
Magistério Superior federal, a tecnocracia dos ministérios da Educação e do
Planejamento de um modo insidioso vem a público afirmar um aumento de 45% de
salário quando de fato o que nos oferece é a obrigatoriedade de 50% de
aumento de trabalho em sala de aula, roubando-nos uma quantidade de horas
semanais que com bastante dificuldade tentamos preservar para as nossas
pesquisas. É uma proposta inaceitável e tem que ser rejeitada de imediato por
todos os professores em greve.
Tenho como assertiva que a
tecnocracia de “esquerda” do atual governo (e a dos governos FHC/Lula) é a
melhor expressão institucional na organização do capitalismo no Brasil nas
últimas décadas, mas ao atingir diretamente os tempos produtivos do trabalho
dos professores-pesquisadores, portanto, de todos os professores do Magistério
Superior federal, anulando a capacidade de pesquisa a favor de uma maior
intensificação do trabalho em sala de aula, essa tecnocracia compromete o
futuro da produção capitalista nacional impedindo o país de estruturar de modo
irreversível, por décadas futuras, os níveis produtivos de mais-valia relativa
de alto valor tecno-científico agregado. Enganam-se aqueles que pensam que a
greve do Magistério Superior federal possa ser uma greve organizada por
princípios “esquerdistas”, muito ao contrário, sabe-se que há entre os
grevistas muitos professores “esquerdistas” (como também é verdade que alguns
desses “esquerdistas”, muito espertamente, durante a greve, ficam em casa
escrevendo artigos e livros para ampliar os currículos Lattes, e que da greve
mesmo pouco querem saber). Esta é uma greve em defesa da qualidade do ensino e
da pesquisa nas Universidades federais de ensino, uma greve que perspectiva,
portanto, uma maior eficiência para essa que é uma das instituições
fundamentais do capitalismo, só há capitalismo robusto com universidades de
excelência centradas em pesquisa e ensino de excelência. Esta é uma greve que
no seu limite institucional defende um capitalismo mais eficiente para o país,
paradoxalmente, portanto, é uma greve que exige uma melhor eficiência
administrativa da tecnocracia de “esquerda” que comanda hegemonicamente os
destinos institucionais do capitalismo brasileiro.
A proposta do governo tem que ser rejeitada
de imediato e a greve dos professores tem que continuar porque no seu âmago
político, defende a premissa de melhores condições para o trabalho docente nas
Universidades, logo, e sem que muitos de nós percebamos isso, esta greve
defende a exitosa preservação do atual projeto capitalista que a tecnocracia de
“esquerda” vem apresentando ao país nos últimos anos. Se fosse uma greve
“esquerdista”, não lutaríamos por uma melhor Universidade capitalista, a luta
seria pela destruição da atual Universidade, mas isso, hoje, nem o mais radical
“esquerdista” se atreve a pensar ou imaginar. Esta greve exige que a
tecnocracia de “esquerda” do governo Dilma melhor se perceba na sua eficiência
como gestora do capital.
*Professor João Alberto da Costa Pinto - Prof. Dr. Adjunto 03 da
Faculdade de História da UFG
[1]A proposta do governo pode ser
vista nestes dois documentos anexos. O primeiro apresenta comparativamente as
tabelas salariais de 2012 a 2015; e o segundo apresenta esquematicamente o
modelo de reestruturação das carreiras docentes.
http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/noticias/srh/2012/120713_superior_tabela.pdf
http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/noticias/srh/2012/120713_proposta_reestruturacao.pdf
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