Bombas químicas: dossiê dos EUA não convence
Anunciado com antecedência, John Kerry, o secretário de Estado, apresentou à imprensa o dossiê do ataque químico a Ghouta.
Na verdade, ele não trouxe nenhuma evidência conclusiva, limitando-se a reafirmar que a culpa de Assad era “clara”.
Kerry narrou detalhadamente todos os passos de um presumido bombardeio químico pelo exército do governo, baseando-se unicamente em informações dos serviços de inteligência norte-americanos.
Lembro que um dossiê desses mesmos serviços foi apresentado há 10 anos pelo então secretário de Estado, Colin Powell, assegurando que Saddam Hussein possuía armas nucleares.
Posteriormente, provou-se que era tudo mentira. Por que acreditar que agora não seja?
Depois de expor os “fatos” que lastrearam suas conclusões, Kerry repetiu que era necessário punir Assad, para que seja respeitado o tratado internacional de proscrição de armas químicas.
Havia também razões humanitárias: a ação norte-americana desestimularia Assad a repetir essa terrível agressão contra seu povo e faria com que outros ditadores não se atrevessem a seguir esse caminho.
Razões humanitárias, a defesa de etnias alemãs, foi exatamente o que Hitler alegou para invadir e ocupar a então Tchecoslováquia e a Polônia.
Os EUA não levaram muito em conta esse tipo de razões, entre l962 e l970, quando bombardearam o Vietnã do Norte, com nuvens do devastador “agente laranja”, causando a morte de 400 mil pessoas e o nascimento de 500 mil crianças com defeitos.
Respondendo a dúvidas, Kerry declarou que não adiantava nada esperar pela conclusão da comissão de investigação da ONU porque, como passou muito tempo, todas as possíveis provas estavam destruídas.
De qualquer maneira, a comissão só poderia apurar se houve ou não ataque químico. Não quem foi o responsável.
Haq, porta-voz do secretário-geral da ONU, o desmentiu afirmando que “o gás sarim pode ser detectado até meses depois do seu uso”.
De fato, os inspetores não terão como afirmar quem lançou as bombas químicas. Mas poderão levantar informações que possibilitem chegar a conclusões, pelo menos mais próximas da verdade do que as “provas” de Kerry.
Nesse sentido, é importante a matéria da repórter Anne Barnard, de Beirute, publicada no New York Times: “Evidências de vídeos e testemunhas sugerem que o lançamento de substâncias tóxicas no ataque da última semana foi executado por mísseis improvisados, o que pode ser feito através de unidades mais móveis e menores do que se pensava ser necessário para lançar bombas químicas”.
Ela informa ainda que a Rússia e o Irã garantem que isso incrimina os rebeldes, que costumam produzir armas improvisadas.
A resposta dos rebeldes é que o exército do governo também usa armas improvisadas – as chamadas “bombas de barril”.
No entanto, por que as tropas de Assad iriam arriscar-se, enchendo mísseis adaptados com gás venenoso, quando dispõem de alternativas tecnológicas mais seguras?
Apesar do que dizem as duas partes, não existe conclusão definitiva sobre quem seria o culpado.
Daqui a três semanas, a comissão da ONU deverá apresentar um relatório, em condições de aclarar a situação. Por que não esperá-lo?
Nesse clima global de ameaças severas e condenações furiosas, tão cedo ninguém terá coragem de lançar outro ataque químico.
A pressa de Obama é suspeita. Parece ter medo de sair desacreditado.
Anuncia-se que, a qualquer momento, os EUA atacarão, possivelmente acompanhados pela França, contra a vontade da maioria dos povos desses dois países.
Depois dos três ataques programados, o governo sírio não ficará de braços cruzados.
O conflito deve se acirrar, talvez se espalhe pelo Oriente Médio, com grande aumento das mortes de civis.
As potências envolvidas ficarão totalmente voltadas para os desenvolvimentos do drama.
É possível que o relatório da comissão de investigação da ONU nem seja mais escrito.
Se for, chegará muito tarde. As coisas terão ido longe demais.
O mundo está contra
Obama sempre condenou as ações unilaterais de Bush. Para ele, os EUA só deveriam intervir em outro país em conjunto com a comunidade internacional.
Logo depois de anunciar o próximo ataque à Síria, Obama e auxiliares iniciaram uma maratona de contatos para convencerem líderes norte-americanos e do exterior a aderirem a sua posição.
Eufórico, John Kerry, o secretário de Estado, não esperou muito para garantir que Assad já estava julgado e condenado pelo mundo.
Portanto, pra que esperar pelas conclusões das investigações da ONU e pela autorização do Conselho de Segurança, que Rússia e China bloqueariam mesmo? “Vamos atacar já”. Falava-se que até quinta-feira passada. Kerry não deveria ser tão apressado.
Enquanto o assunto era discutido, o povo norte-americano e da Europa, mais os líderes da maioria dos países amigos, começaram a roer a corda.
A tese radical do “atacar primeiro, investigar depois”, posta em prática por Bush no Iraque, perdeu força. E, mais grave, nos próprios EUA e no Reino Unido.
Pesquisa da Reuters revelou que 60% dos estadunidenses repudiavam o ataque sem aval da ONU e nem investigações. E mais: a intervenção militar era condenada por 46% x 25%, mesmo que se provasse a culpa do governo sírio.
Enquanto isso, 162 representantes, inclusive democratas, pediam que Obama ouvisse o Congresso.
No exterior, a Liga Árabe, em maioria culpava Assad, mas não queria intervenções militares sem resolução do Conselho de Segurança.
Países aliados como Áustria, Egito, Polônia, Canadá, Jordânia, entre outros, foram pelo mesmo caminho. A Jordânia ainda acrescentou que não cederá seu território para lançamento de ataques à Síria.
Mesmo na Alemanha, onde o placar de pesquisa da TV ZDF foi de 58% x 33% contra o ataque, o governo vacila. Afinal, as eleições vêm aí e não convém desgostar os eleitores...
Na América do Sul, todos os países da UNASUL, inclusive o Brasil, exigiram respeito à legislação internacional, que só permite intervenções militares com a chancela da ONU.
O único país que topou unir-se às operações norte-americanas foi a França, que, aliás, acaba de fechar com a Arábia Saudita (grande inimiga de Assad) um negócio de um 1 bilhão de euros, envolvendo a venda de seis vasos de guerra.
Mas o povo francês não apoia Hollande: pesquisa do jornal Le Parisien revela que 64% dos respondentes são contra o ataque à Síria.
A Turquia, os países do Golfo e Israel batem palmas para Obama, mas, por enquanto, não falaram em apoios militares.
Respeitáveis instituições internacionais também condenaram a proposta belicosa da Casa Branca.
A Cruz Vermelha, porque o ataque resultaria num brutal influxo de ondas de refugiados para países vizinhos, que já não têm condições de cuidar dos que lá chegaram.
E os “Médicos Sem Fronteiras, que reduziram para 355 mortos os 1.429 anunciados por John Kerry, lembraram não haver provas definitivas de um ataque químico. Seria necessário esperar pelas conclusões da Comissão da ONU.
O papa Francisco, o arcebispo de Canterbury e o bispo Desmond Tutu (herói da luta anti-apartheid) foram unânimes na condenação da intervenção, afirmando que só negociações resolveriam.
Duro pra valer foi o que aconteceu no Reino Unido, o eterno aliado dos EUA.
Quando Obama bateu o martelo, Cameron apressou-se a apoiá-lo, a garantir a participação militar inglesa em mais esta aventura guerreira patrocinada por Washington.
Mas o Partido Trabalhista protestou, alegou que não havia provas contra Assad, seria necessário esperar pelas conclusões da ONU e a decisão do Conselho de Segurança.
Numa longa discussão, o Congresso inglês ficou contra Cameron e Obama, com votos de todos os trabalhistas, além de muitos conservadores e liberais.
A argumentação do premier inglês, que não apresentou provas – apenas garantiu que existiam –, não pegou. No fim, ele acabou admitindo que, 100% de certeza, ele não tinha.
Dois fatos pesaram muito na derrota conservadora. Em 2003, o parlamento aprovou a guerra contra o Iraque baseado em mentiras de Tony Blair. Desta vez, a maioria dos deputados não quis se arriscar a repetir um erro de tal gravidade.
Também influiu bastante na votação a pesquisa do Daily Telegraph, que mostrou apenas 11% dos ingleses a favor do ataque.
A inesperada oposição da maioria da opinião pública mundial, inclusive dos “grandes amigos” de Washington, balançou Obama.
O ataque, programado para quinta-feira, 30 de agosto, foi adiado. Mas não cancelado.
Obama vai sozinho, impondo suas posições ilegais ao resto do globo. Bem ao estilo Bush, master of the world.
Novo suspeito no ataque químico: Arábia Saudita
Com aparente convicção, David Cameron, o primeiro-ministro do Reino Unido, garantiu que Assad fora responsável pelas bombas químicas lançadas em Ghouta.
Baseou-se em informações do seu serviço secreto cuja lógica seria “perfeita”: os vídeos provavam o ataque e, como os rebeldes não teriam condições de produzir os gases tóxicos, o culpado só poderia ser o regime sírio.
A conclusão desse raciocínio parece ter sido desmontada. Matéria do MintPress News, publicada em 30 de agosto, revela que o dedo da Arábia Saudita pode estar na operação proibida.
Entrevistas feitas no próprio local do incidente entre moradores, combatentes rebeldes, seus pais e esposas, apontam para uma possível cumplicidade da Arábia Saudita.
Através dos bons ofícios do príncipe Bandar, chefe da segurança do petro-reino, grupos rebeldes receberam carregamentos de gás sarim.
Sob a orientação do miliciano saudita, Abu-Ayesha, líder de um batalhão, o gás, acondicionado em tubos e imensos garrafões, foi armazenado em túneis.
Abdel-Monein, pai de um miliciano do exército rebelde, conta que seu filho e mais 12 combatentes morreram nesses túneis, durante o ataque químico.
Uma miliciana das forças anti-Assad, codinome “k”, reclamou que não foram informados sobre o gás e nem como fazer seu manuseio.
“Quando o príncipe Bandar forneceu essas armas, deveria fornecê-las a quem sabe manusear e usá-las”.
Parece que o grupo Nusra, ligado à al-Qaeda, foi um dos contemplados. Logo após o ataque químico a Ghouta, o Nusra ameaçou que retaliaria, promovendo um ataque similar contra civis da cidade de Latakia, o coração do regime Assad.
Esse príncipe Bandar mantém excelentes relações com os serviços de inteligência norte-americanos e foi nomeado pelo rei da Arábia Saudita para promover, a todo custo, a derrubada de Assad.
O jornal inglês Daily Telegraph relata que, em encontro com Putin, tentou convencê-lo a abandonar Assad em troca de uma venda de 15 bilhões de dólares em armas para seu país, além de petróleo a preços de banana.
Acrescentou uma proposta de transação bem no estilo de Al Capone, Lucky Luciano e outros cidadãos da honorabile societá: a venda de proteção.
Conforme o Daily Telegraph : “o príncipe Bandar prometeu a manutenção da base naval da Rússia na Síria, no caso de o regime Assad cair”.
Ele teria explicado: “Eu posso dar a vocês garantia de proteger os Jogos de Inverno, no próximo ano. Os grupos chechenos que ameaçam a segurança dos jogos são controlados por nós.”
Como se sabe, Putin não topou – nenhum estadista que se preze vende a política externa do seu país.
Acostumada a comprar tudo (inclusive consciências), a Arábia Saudita parece estar seriamente implicada no uso das armas químicas na guerra da Síria.
Convinha que a ONU liderasse uma nova investigação para apurar melhor os fatos e as responsabilidades deste país.
Hipocritamente, a monarquia absolutista saudita é um dos mais indignados acusadores do governo da Síria.
Parece que sua veemente condenação da desumanidade das armas químicas se restringe a apenas quando o regime de Damasco as teria usado.
A reportagem da Mint Press News derruba o argumento-chave da inteligência britânica para culpar Assad beyond a reasonable doubt. Fica claro que também os rebeldes teriam condições de lançá-las.
O autor da matéria, Dale Gavlak, é correspondente do Mint Press News e da Associated Press, para o Oriente Médio. Expert no assunto, ele vive há mais de duas décadas em Aman, Jordânia.
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Luiz Eça é jornalista.
Website: http://www.olharomundo.com.br/
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