Enquanto o mundo coloca os olhos sobre toda a badalação em torno do sorteio dos grupos da Copa, os mais atentos brasileiros continuam testemunhando o andamento interno do processo, comparando o discurso de legado com a realidade dos fatos. Após a morte dos operários Fabio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos nas obras do estádio de Itaquera, o lado obscuro dos megaeventos voltou a emergir.
“Com certeza existe pressão sobre os prazos de entregas. No último dia 30, tivemos uma reunião do Comitê Popular da Copa aqui em Itaquera, na qual contatamos uns três operários. O medo deles de falar e se identificar é visível. Mas eles realmente confirmam as denúncias. Todos aqueles com quem conversamos são, individualmente, taxativos. Nas conversas que tivemos, falaram das pressões e intimidações que existem, inclusive em relação ao acidente”, contou Serginho Lima, morador de Itaquera de toda a vida, em entrevista ao Correio da Cidadania.
Na conversa, gravada em conjunto com a webrádio Central3, Serginho conta como a ilusão, a respeito do prometido processo de desenvolvimento que desembarcaria no popular bairro da zona leste, já dá lugar à insatisfação. Além disso, conta que as necessidades mais básicas da população continuam em estado lamentável, com os velhos problemas de saúde e educação, além da completa ausência de esclarecimentos às centenas de famílias ameaçadas de remoção, especialmente da Comunidade da Paz, a mais próxima das obras do estádio.
“De modo geral, estão se desenhando, de novo, grandes manifestações. Penso que aquele clamor, que vem de junho pra cá, continuará e Itaquera não vai ficar indiferente. Com certeza, teremos outras manifestações. E na Copa também. Posso estar enganado, mas é o que vejo se desenhar. Até por conta de novos acontecimentos de responsabilidade do poder público aqui na região”, prevê Serginho, que classificou como “engodo” as promessas de mudança de vida feitas pelas autoridades públicas.
A entrevista completa com Serginho Lima pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como vocês enxergam o trágico acidente ocorrido no dia 27 de novembro, nas obras do Itaquerão, que terminou com a morte dos operários Fabio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos?
Serginho Lima: Pra responder a pergunta, ficamos, de certa forma, um pouco preocupados. Pois temos gente nossa que trabalha dentro das obras. Aqui, perto da minha casa, tem um moço que veio do Nordeste, com família, e na hora do acidente tivemos de correr e nos informar da situação, para tranquilizar sua esposa e sua filhinha.
Infelizmente, foram duas mortes, mas, se não fosse o horário de almoço, poderiam ser mais. Ficamos muito tristes de ver a morte de dois operários, duas pessoas simples, do povo, que estavam no seu ganha-pão.
Correio da Cidadania: O que você comentaria a respeito das denúncias que já aparecem de insegurança e também de pressão para conclusão da obra? O diário Lance publicou, na edição de 30/11, denúncia de um operário, explicando que a mesma peça, no lado norte do estádio, foi dividida em duas, antes de ser encaixada no topo da cobertura, e dessa vez tentou-se colocar de uma única vez...
Serginho Lima: Ah, sim, com certeza existe isso. No último dia 30, tivemos uma reunião do Comitê Popular da Copa aqui em Itaquera, na qual contatamos uns três operários. O medo deles de falar e se identificar é visível. Mas eles realmente confirmam as denúncias. Todos aqueles com quem conversamos são, individualmente, taxativos. Nas conversas que tivemos, falaram das pressões e intimidações que existem, inclusive em relação ao acidente.
É lógico que isso mostra o comportamento da Odebrecht e as empresas que conduzem a construção, de pressionar os operários para terminar a obra dentro do prazo anterior (31 de dezembro). Agora, vai demorar é muito mais (o Comitê Organizador da Copa estima a entrega do estádio em abril).
Correio da Cidadania: O que o Comitê pode falar a respeito da dinâmica das obras da Copa, neste e nos demais estádios, que já registraram greves, acidentes e mortes em algum momento?
Serginho Lima: Eu, propriamente, sou novo no Comitê. Nós, da zona leste e Itaquera, procuramos o pessoal há pouco tempo, pra nos juntarmos à luta, uma luta por direitos, travada pela comunidade e as pessoas que aqui residem. Há pessoas com mais embasamento e conteúdo pra falar da questão. De toda forma, algumas coisas são visíveis, até pelos posicionamentos dos operários e operárias com quem temos contato – também há mulheres na obra, inclusive moradoras daqui.
Correio da Cidadania: Como está a questão social envolvida pela obra? O que vocês podem nos contar a respeito de remoções de famílias pobres no entorno do estádio?
Serginho Lima: Sobre isso, posso falar melhor. Estou há 40 anos em Itaquera e agora fomos movidos a lutar, por demandas que aqui não existem, não chegam. E vamos vendo que a história de “legado da Copa” é uma grande mentira. Hoje mesmo (a entrevista foi gravada na quarta-feira, 4), recebi a ligação de um dos líderes da ocupação da Comunidade da Paz, aquela mais próxima do estádio. Estamos até ajudando o pessoal a fazer um ofício, passar pela formalidade do processo e poder buscar informações.
No dia 23/10, houve uma audiência pública com essa comunidade, na subprefeitura de Itaquera. E anteriormente, um cadastramento, onde haveria o anúncio de que 101 famílias (do chamado ‘setor 1’ da ocupação) seriam as primeiras reassentadas, entre as 377 famílias. As outras, por sua vez, ficariam para depois. Mas disseram que as 101 precisariam sair da ocupação da favela da Paz por causa da continuidade das obras do entorno do estádio.
O dia prometido do anúncio, 23/10, já passou, nada aconteceu e as famílias estão ficando desesperadas. A obra está chegando lá, o túnel, a ponte, e até agora nada de resposta a eles. Só há indecisão, silêncio e nenhum posicionamento de autoridade oficial sobre o que acontecerá com as famílias.
Correio da Cidadania: E o prometido desenvolvimento e progresso a serem trazidos à região, em benefício de sua população? Como tem sido esse processo, que se refere ao tão aclamado “legado” da Copa?
Serginho Lima: Com relação à saúde pública, podemos informar que a situação é muito ruim. Essa mesma comunidade da qual estamos falando não tem atendimento do chamado Programa Saúde da Família. Até nas outras comunidades, como a minha, que fica a 10 minutos de condução do estádio, não observamos nenhuma melhoria para o povo.
Eu não vou participar da Copa, não vou estar lá dentro. O espetáculo do futebol é muito belo, mas percebemos que o papo de “legado da Copa”, “melhorias em Itaquera”, “uma Itaquera centro do mundo”, é um grande engodo, uma propaganda enganosa. Teria de ser bom pra todos, não só aos empresários, instituições envolvidas, mas não é o que acontece.
Vocês podem vir aqui que poderemos detalhar, inclusive oferecendo o contraditório. Mas está visível, creio que qualquer pessoa que você parar em Itaquera, perto do metrô ou até pouco depois, pode confirmar. Podemos contemplar um túnel, uma ponte, ainda não terminada, e um parque cercado, um parque linear que eles dizem não ser obra da Copa. Dizem que já estava planejado anteriormente. Fora isso, nada.
Nessa semana mesmo, chegou a mim uma demanda de mãe, de comunidade próxima ao Itaquerão, que está desde 2012 aguardando lugar na creche para o filho dela. É um absurdo, verificamos que não existe nada de investimento na educação, na saúde e na infraestrutura do bairro. Remédios e materiais demoram pra chegar, vêm de forma limitada... E com isso nós vamos vendo a indignação ficar muito maior que a alegria.
Correio da Cidadania: Com 40 anos de Itaquera, nota-se seu esclarecimento a respeito do processo político em torno do bairro, além de sua maior familiaridade com movimentos sociais. Mas, saindo desse aspecto, como são suas conversas com a vizinhança, as pessoas do bairro com quem você sempre teve contato? Existe uma insatisfação generalizada ou ainda são muitas pessoas inebriadas pelo discurso e o circo da Copa, com todas as suas promessas?
Serginho Lima: De forma geral, a alegria já foi maior. Foi muito grande quando do anúncio do Brasil como sede, maior ainda quando o Itaquerão foi confirmado como sede paulista, enfim, havia todo esse contexto. Confesso que até pra mim foi assim. Mas depois fomos vendo os acontecimentos. E a população começa a enxergar através da poeira, não pelo que mostra a mídia grande, e sim pela voz das ruas e das lutas. Fazemos parte de uma parcela do povo que, realmente, enxergou um pouquinho mais tarde.
Existe a paixão pelo futebol, sem dúvidas. Agora, porém, você conversa com pessoas que dizem “olha, não precisávamos de Copa nesse exato momento da vida, do jeito que estamos aqui e do jeito que se faz”. Falo do povo mesmo, no geral, não de militantes que estão na luta. Falo da população que pega seu trem, metrô, vai e volta do centro, cansada. Essas pessoas vão te dizer que gostam de futebol, são apaixonadas, mas que não precisavam de Copa, não nesse momento e não dessa forma. Com certeza, a grande maioria diria isso no momento.
Correio da Cidadania: E com o quadro traçado por você a respeito da realidade dos fatos e a percepção da população, quais serão as próximas movimentações políticas do Comitê e também dos habitantes de Itaquera?
Serginho Lima: De modo geral, estão se desenhando, de novo, grandes manifestações. Penso que aquele clamor, que vem de junho pra cá, continuará e Itaquera não vai ficar indiferente. Com certeza, teremos outras manifestações. E na Copa também. Posso estar enganado, mas é o que vejo se desenhar. Até por conta de novos acontecimentos de responsabilidade do poder público aqui na região.
Gabriel Brito e Leandro Iamin são jornalistas.
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