quarta-feira, 26 de março de 2014

Tortura: o requinte da crueldade humana

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Por Frei Marcos Sassatelli

Dia primeiro de abril de 1964 é uma data que não pode ser esquecida. Passaram-se 50 anos do golpe civil-militar, que deu início no Brasil a um longo período de ditadura, terminado somente em 15 de março de 1985. Fazemos a memória, ou seja, tornamos presente esta data para que os horrores praticados durante a ditadura nunca mais aconteçam na história do Brasil.


No dia 15 do mês corrente, participei – no Auditório Costa Lima da Assembleia Legislativa de Goiás – da Audiência Pública sobre a luta camponesa de Trombas e Formoso, no norte de Goiás, realizada conjuntamente pela Comissão de Direitos Humanos, Cidadania e Legislação Participativa da Assembleia do Estado de Goiás (CDH-ALEGO), pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Associação dos Anistiados Políticos de Goiás (ANIGO), com o apoio do Comitê Goiano da Verdade, uma organização da sociedade civil.

Fizeram parte da mesa Maria Rita Kehl (integrante da CNV, que coordena o grupo de trabalho "Graves violações de Direitos Humanos no campo ou contra indígenas"), o deputado Mauro Rubem (presidente da CDH-ALEGO), Marcantônio Dela Côrte (presidente da ANIGO) e Dirce Machado da Silva (representante da Associação de Lavradores de Trombas e Formoso).

Foi uma audiência que resgatou a biografia do líder camponês José Porfírio de Souza (ou Zé Profiro, como era chamado pelos posseiros) e nos emocionou a todos e todas. Dirigentes de entidades civis, que conviveram com Porfírio, e seus descendentes, nos contaram a história da luta camponesa de Trombas e Formoso, exigindo do governo a localização dos restos mortais de José Porfírio.

Essa luta começou em 1950. De um lado, estavam camponeses sem terra, apoiados por estudantes, operários e militantes de grupos de esquerda. Do outro, grileiros, apoiados por jagunços e forças policiais.

José Porfírio liderou um movimento camponês de resistência e luta pela reforma agrária, que, após dez anos de conflitos, conseguiu a vitória, conquistando terras devolutas, que os grileiros queriam tomar dos posseiros. Em 1962 – após a vitória dos camponeses –, Porfírio elegeu-se deputado estadual, o primeiro do país de origem camponesa.

Com o golpe civil-militar de 64, os camponeses da região foram perseguidos e torturados. No início dos anos 70, a repressão foi brutal. Porfírio mergulhou na clandestinidade e passou a organizar focos de combate à ditadura. Foi literalmente caçado pelos órgãos de repressão do regime autoritário civil-militar. Foi preso em 1972 no Maranhão – onde tentava articular um movimento de resistência – durante a Operação Mesopotâmia, organizada pelo Exército, que queria eliminá-lo. Foi levado para o Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do Comando Militar do Planalto, em Brasília, onde permaneceu preso até 7 de julho de 1973. Foi torturado e – no dia que foi libertado – deixado na rodoviária da capital federal por sua advogada. Desde então, José Porfírio está desaparecido.

Na época, foram realizadas, no norte de Goiás, inúmeras prisões. Entre elas, a de Durvalino, de 17 anos, filho de José Porfírio, que foi barbaramente torturado e, depois, internado, com transtornos mentais, num hospital psiquiátrico de Goiânia, onde desapareceu.

A Audiência Pública começou com a exibição de trechos do documentário Cadê Profiro?, do cineasta Hélio Brito. Durante a Audiência, a ex-militante comunista Dirce Machado da Silva, presidente da Associação dos Lavradores de Trombas e Formoso, enviada à região em 1954 pelo PCB para dar orientação política ao líder dos posseiros, afirmou: “José Porfírio foi um líder rural autêntico”. O presidente da ANIGO, Marcoantônio Dela Côrte, disse: “os militares tinham muito medo do Porfírio”.

Cláudio Maia, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), lembrou que o Estado, diante do conflito agrário, agiu sempre em defesa do latifúndio e da exploração. Trombas foi um encontro de experiências. Mesmo tendo a presença de um partido de esquerda, o mais importante neste encontro eram os militantes, pessoas que acreditavam “no modelo camponês de fazer as coisas”.

“Trombas – afirmou o professor – ficou na memória do estado de Goiás como um movimento vitorioso. E a figura de Porfírio se tornou muito conhecida no estado. Ele espelhava não só sua individualidade, como também a sua luta e a luta de cada posseiro. Porfírio mantinha a característica de uma liderança consolidada. Esta áurea da vitória de Trombas atravessou 1964”.

No final da audiência, Sebastião de Abreu, jornalista e militante da luta de Trombas e Formoso, declarou: "não vamos parar de lutar. Queremos que os militares devolvam os restos mortais de José Porfírio".

O que mais me impressionou e me chocou na Audiência Pública foram os relatos de torturas de Dirce Machado da Silva. O requinte de crueldade das torturas do tempo da ditadura civil-militar chega a ser tão sofisticado, diabólico e repugnante que é assustador. Não dá para acreditar que um ser humano seja capaz de usar sua inteligência para ser tão mau. É realmente uma barbárie!

Fala-se de dez tipos de torturas (com todas as variantes possíveis e imagináveis) praticadas nos “porões da humanidade” da ditadura: cadeira do dragão, pau-de-arara, choques elétricos, espancamentos, cama cirúrgica, afogamentos, soro da verdade, geladeira, arrastamento pela viatura, coroa de Cristo ou capacete. Que mancha indelével! Que vergonha para o Brasil!

Para qualquer pessoa, que tem um mínimo de sensibilidade humana e de senso ético, falar de torturas – seja por motivos políticos ou outros – dá vômito. Além disso, a prática da tortura denota um atraso cultural inconcebível e inadmissível no mundo de hoje. Ditadura, nunca mais! Tortura, nunca mais!

Para os torturadores de ontem e de hoje – que na realidade são verdadeiros monstros humanos – vale a advertência do profeta Isaías: “vocês estão com as mãos sujas de sangue, estão com os dedos manchados de crimes, seus lábios só falam mentira e suas línguas susurram maldade” (Is 59, 3).

Que a memória das torturas da ditadura civil-militar nos coloque, a todos e todas, num estado de silenciosa e profunda meditação sobre o sentido da vida humana e nos leve a um compromisso radical na defesa e promoção dos direitos humanos.

Que a justiça seja feita e que todos os torturadores sejam processados, julgados e punidos!

Foto: Comissão Nacional da Verdade
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Audiência Pública sobre a Luta Camponesa de Trombas e Formoso; no detalhe, acima, José Porfírio.


Frei Marcos Sassatelli, frade dominicano, é doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP); é professor aposentado de Filosofia da UFG.

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