sábado, 21 de julho de 2012

Usinas do Mato Grosso do Sul tentam barrar direitos trabalhistas na Justiça


Latifundiários permutam pagamento de horas 'in itinere' por outros benefícios; sindicatos e MPT contestam prática na Justiça.

 Sindicatos e o Ministério Público do Trabalho (MPT) contestam na Justiça o fato de usinas sucroalcooleiras não pagarem horas extras de deslocamento (horas in itinere) a mais de 25 mil trabalhadores no Mato Grosso do Sul. A prática estabelecida no estado levou a abertura de uma Ação Civil Pública contra a associação de empresas do setor. De início, o Tribunal Regional do Trabalho do Estado (TRT/MS) decidiu em favor dos usineiros, mas o MPT pretende recorrer. Ao mesmo tempo que a disputa na Justiça prossegue, representantes das empresas e sindicatos se reúnem nesta semana para discutir a questão, tendo como base também ações judiciais.

De acordo com cálculos da 24ª Procuradoria Regional do MPT baseados em consulta aos trabalhadores, o percurso para ir e voltar do serviço leva em média 2 horas e 45 minutos diários. Para o Procurador do Trabalho do MPT, Paulo Douglas Almeida de Morais, esse problema não é apenas de ordem econômica, mas também social porque é um direito aviltado. "Esse tempo de percurso, que não é remunerado, acaba alijando do trabalhador, por exemplo, o convívio familiar e a possibilidade de estudar. Bom lembrar que estamos falando de 25 mil famílias”, pondera em entrevista à Repórter Brasil.

No salário de uma pessoa que recebe R$ 800,00, essa quantia não-paga representa um déficit de R$ 422,18 mensais, pelos cálculos do MPT. A soma do não-recebimento dessas horas extras resulta em uma quantia de mais R$ 350 milhões anuais que os empregados da região ficam sem receber. A atividade sucroalcooleira é uma das que mais recebe financiamentos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) no Brasil.

Até o ano de 2010, as empresas do ramo sucroalcooleiro acumularam um total de R$ 1,046 bilhão. Este é o valor investido pelo Governo Federal, por meio do PAC, na ampliação e implantação de usinas produtoras de álcool e açúcar não só no Mato Grosso do Sul, mas em todo o país. Só no ano passado, os investimentos chegaram à quantia de R$ 714 milhões. Além dos recursos do PAC, em 2011, o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) anunciou financiamento, dividido em quatro anos, de R$ 35 bilhões ao setor.

“As usinas sucroalcooleiras têm dificuldade de calcular o tempo in itinere porque cada usina tem um valor de hora, devido à localização”, argumenta Paulo Aurélio, gerente da Associação dos Produtores de Bioenergia do Mato Grosso do Sul (Biosul-MS). Ele defende que apenas 13% dos funcionários do setor, os que trabalham na área rural, têm direito ao pagamento do tempo in itinere, mas aponta como um empecilho para o cálculo o fato de eles não terem ponto fixo de trabalho e executarem uma tarefa itinerante. Como o corte e a colheita da cana-de-açúcar acontecem em diferentes áreas, o cálculo do valor por cada dia de expediente é impossível de ser feito, defende o representante das empresas.

Ele diz ainda que os outros 87% dos empregados do setor, os que trabalham na área industrial, não têm direito às horas extras relativas ao deslocamento por terem pontos de trabalho fixo. “Se a empresa pagar todo o tempo in itinere, vai ter que retirar os benefícios que dá”, afirma o gerente, referindo-se à permuta que as usinas do estado fazem com os trabalhadores. Na prática, as usinas negociam o tempo in itinere em troca de vale-transporte, plano de saúde, seguro de vida ou outros benefícios.

Essa diferenciação de duas categorias de empregados, rurais e industriários, feitas pelos usineiros sul-mato-grossenses é contestada pelos sindicatos. As empresas consideram que existem dois tipos de mão de obra e, portanto, diferentes obrigações trabalhistas e unidades sindicais. “O pagamento integral das horas in itinere é unânime em toda a categoria da área agrícola. Estamos até entrando com uma ação (na Justiça) para mudar essa representação, que só acontece no setor sucroalcooleiro”, afirma Marisa Lima, advogada da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Mato Grosso do Sul (FETAGRI-MS).

“A lei determina que o setor sucroalcooleiro pague as horas in itinere, tanto que a própria 4ª vara do Tribunal Regional do Trabalho pediu uma assembleia somente para tratar essa questão com muitos trabalhadores que não sabiam desse direito”, continua Marisa. Ela cita ainda a lei nº 4.870/1965, que regulamenta a produção de cana-de-açúcar no Brasil e tem um capítulo específico indicando as obrigações dos produtores com a assistência social aos empregados do setor, sejam industriários ou rurais.

Disputa de jurisdição

“Pela legislação, as empresas do ramo têm obrigação de aplicar um percentual do faturamento em medidas de assistência social a qualquer trabalhador sucroalcooleiro”, explica, de um lado, Paulo Douglas. No texto a lei estabelece, entre outros compromissos, “assistência médica, hospitalar e farmacêutica”. “Isso obriga as usinas do setor a, por exemplo, fornecerem obrigatoriamente o Plano de Saúde. Então, esses benefícios não retiram o pagamento das horas in itinere”, de acordo com o procurador do trabalho.

De outro, o gerente da Biosul-MS, Paulo Aurélio, declara que a aplicação dessa lei ainda é incerta, porque segue em questionamento na Justiça. “Em alguns casos, as empresas alegaram um conflito de competência no caso, se era de cunho econômico ou trabalhista, já que as usinas eram obrigadas a pagar os benefícios quando o preço da produção ainda era tabelado pelo Governo Federal. Aqui no Mato Grosso do Sul o procurador entendeu que isso era uma questão de obrigação trabalhista”, comenta. Em julho de 2011, o MPT entrou com uma Ação Civil Pública no TRT/MS denunciando o não-pagamento das horas in itinere. O processo tramitou durante um ano na Justiça do Trabalho até, contudo, ser “extinto por ausência das condições da ação” no começo desse mês. O MPT pretende recorrer da decisão.

Segundo Paulo Douglas, um dos responsáveis pelo documento que colocou como réu a Biosul-MS, todas as usinas do estado apresentam o problema, ou seja, não computam a jornada in itinere, e portanto não caberia abrir uma nova ação para cada empresa instalada no Estado. "A 4ª Vara do Trabalho de Campo Grande extinguiu a ação por entender que o sindicato patronal não poderia responder pelas obrigações devidas pelas usinas por ele representadas. O Ministério Público discorda deste entendimento e preparará o recurso necessário”.

Além disso, pelo menos 15 Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR) do Estado entraram com Ações Civis Coletivas na Justiça contra as usinas sul-mato-grossenses para conseguir o pagamento integral das horas extras. Uma nova rodada de negociação entre os empregados e as empresas da categoria está marcada para esta semana. O TRT/MS, portanto, está na iminência de decidir sobre vários dissídios coletivos — alguns em que o processo já se estende há mais de nove meses.

Parte desses casos pode servir de jurisprudência para decidir sobre horas in itinere em todo o Mato Grosso do Sul e a possibilidade de novas decisões da Justiça que favoreçam as empresas sucroalcooleiras preocupa o MPT. “Na prática, se o Tribunal decidir assim vai perpetuar essa violação de direitos dos trabalhadores”, avalia o procurador.

Registro in itinere

Apesar dessa incerteza jurídica, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) estabelece algumas normas para o cálculo do tempo in itinere. A Portaria 1.510 do MTE trata da questão, enquanto a nota técnica nº304/2010 da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) complementa o tema. O registro das horas extras, que a Biosul-MS aponta como dificuldade, poderia, então, acontecer através de um Registrador Eletrônico de Ponto (REP) móvel — uma espécie de catraca que seria fixada na entrada do transporte fornecido pelas usinas aos empregados e registraria o tempo de deslocamento deles até o local de trabalho e de lá de volta para casa.

“Ainda existe dúvidas quanto ao uso do equipamento e, enquanto existir dúvidas, as usinas vão continuar negociando (a permuta das horas por benefícios). Não fazemos nada que a lei não determina e, enquanto a gente puder negociar, vamos continuar negociando”, responde Paulo Aurélio à Repórter Brasil sobre o uso do REP móvel. “Se a gente já negociou as horas in itinere, como é que vamos calcular esse tempo?”, completa.

“Nenhuma das usinas faz o pagamento integral das horas in itinere. Nas negociações, demonstramos aquilo que é de direito das usinas e aquilo que é de direito dos trabalhadores”, diz Marisa. Ela aponta também que muitas empresas estão dificultando a ação dos sindicatos de trabalhadores porque estão tentando firmar com cada empregado individualmente uma decisão que deveria ser da classe inteira. “As usinas querem fechar acordos na base, mas aí nós (do sindicato) perdemos força na Justiça”.

A advogada da FETAGRI explica à Repórter Brasil que as usinas pretendem, com isso, enfraquecer a representação sindical perante o Tribunal do Trabalho, de modo a induzir a Justiça a priorizar a decisão individual de cada trabalhador contra a decisão coletiva da classe. “Para ser uma decisão da categoria tem que ser uma decisão tomada em assembleia. Você precisa consultar os trabalhadores que você representa”, afirma.

Por Guilherme Zocchio, Repórter Brasil.

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