Por Léo Lince
Os militares de pensamento democrático (eles existem, basta rememorar os punidos em 64) sempre foram radicalmente contrários ao uso das forças armadas no papel de polícia. Ancorados por inúmeras lições da história, acontecidas aqui mesmo no Brasil e pelo mundo afora, eles sustentam sua tese em posições de princípio e na análise dos resultados concretos, nefastos na totalidade dos casos, de semelhantes intervenções.
Nelson Werneck Sodré, general e de esquerda, foi por algum tempo, nos meados do século passado, diretor da Biblioteca do Exército. Autor de uma volumosa e respeitada obra, ele foi responsável pela primeira edição entre nós de um livro que se tornou referência para o tema em pauta: “Servidão e grandeza militares”, do grande escritor francês Alfred de Vigny.
Neste belo livro (para os interessados: DIFEL, São Paulo, 1967), o consagrado autor produz uma reflexão comovida sobre os dilemas de sua própria experiência no exercício do ofício militar. Segundo ele, a grandeza e abnegação dos que entregam a vida na defesa da pátria se transveste em servidão abjeta quando as baionetas se voltam contra o “inimigo interno”. Diz que “ninguém mais do que o soldado sofre com o papel de ‘gendarme’ que lhe impõem os governos modernos”, ainda mais quando reacionários, impopulares e corruptos.
A força bruta pode avassalar, mas não é capaz de convencer as consciências. Foi o que disse, em outras palavras, Salvador Allende antes de ser assassinado pelo exército do país que ele, legitimamente, presidia. Não se discute a eficácia temporária da violência repressiva, mas a corrosão permanente que ela provoca nos aparelhos que a realizam. Em suma, a história não registra exemplo de grandeza militar nas tarefas de manutenção da ordem interna.
No contraponto de tal ensinamento, os militares brasileiros das três armas acabam de ser convocados pelo governo federal para desempenhar o papel de polícia no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro. As razões e as consequências de tão grave decisão ainda estão envoltas nas nuvens do mistério. A chefia do governo central não cuidou de explicar nada, apenas assinou o decreto como se de coisa corriqueira se tratasse.
Ninguém sabe, ao certo, de nada. Os jornais diários trazem notícias desencontradas. Até o tempo de duração da ocupação, que o decreto que a deliberou deveria estipular, não foi objeto de informação oficial. Alguns dizem ser o final de julho, o que explicitaria o objetivo primordial de prevenir manifestações durante os jogos da Copa. Sobre os efetivos destacados para a ocupação, a depender do jornal, serão menos de dois mil, oito mil ou até quinze mil. Anuncia-se o uso vasos de guerra e blindados da Marinha, helicópteros e aviões da Aeronáutica, tropas de elite do Exército, batalhão de paraquedistas, brigadas da infantaria, além das múltiplas polícias do poder local.
Em meio à confusão generalizada, algumas questões se mostram com meridiana clareza. Uma delas é a desmoralização completa do governo estadual e a falência de sua antes tão decantada política de segurança pública. Outra é o ânimo autoritário do poder judiciário local. A concessão do mandado de busca coletiva, que deve ter sido objeto das tratativas secretas que prepararam a ocupação, é uma aberração própria dos períodos totalitários. Ao contrário do preceito que rege o Estado Democrático de Direito, todos os moradores da Maré são culpados até prova em contrário. É a criminalização da pobreza, expressão concreta da vigência entre nós do “Estado Autoritário de Direito”.
Em tais situações, quando as forças armadas são chamadas a apontar suas baionetas contra o “inimigo interno”, a cautela recomenda botar as barbas de molho. Quando se admite, na letra da “lei”, a existência de cidadãos de segunda categoria, fica claro que em tal sociedade ninguém é cidadão. Quando parte da população é tratada como estrangeira em seu próprio país, recomenda-se tomar o máximo cuidado: a próxima vítima pode ser você.
Ainda não se trata, é claro, de uma nova ditadura meio século depois da outra. Pode ser um mero arreganho para garantir os lucros da máquina mercante nos negócios da copa. Desfile de luzidos equipamentos da segurança cenográfica que será desmontada depois do megaevento. O aprendiz de feiticeiro, no entanto, desencadeia forças que depois não sabe controlar. A ocupação da Maré pelas forças armadas, na base da GLO, sigla terrível, e do mandado coletivo de busca, que define como marco legal vigente o “Estado Autoritário de Direito”, abre espaços para as soturnas botas que podem pisotear a nossa precária democracia, aquela plantinha tenra.
Léo Lince é sociólogo
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